I

chegaram as máquinas para talhar a cidade que vem
das águas cresce a obra do homem, ouve-se um lento
grito d'espuma e suor...
... na memória ficaram os sinais dos bosques ceifados,
as dunas desfeitas e algumas casas abandonadas
estenderam-se tubos prateados, onde escorre o negro
líquido
levantaram-se imensas chaminés, serpenteiam auto-es-
tradas na paisagem irreconhecível do teu rosto...

onde estarão as tâmaras maduras das tuas palmeiras?
e o perfume intenso das flores debruçando-se ao sol?
que murmúrio terão as pedras do teu silêncio?

a memória é hoje uma ferida onde lateja a Pedra do Ho-
mem, hirta como uma sombra num sonho
e as aves? frágeis quando aperta a tempestade... migraram como eu?
aonde caminhas, Doce Moura Encantada?

ouço o ciciar dos canaviais dentro do sono, adivinho teu
caminhar de beijos no rumor das águas
tuas mãos de neve recolhem conchas, estrelas secretas,
luas incendiadas... que o mar esconde na respiração das mar-
rés

estremecem-me nas mãos os insectos cortantes do medo,
em meu peito doido ergue-se esta raiva dos mares-de-leva...

Al Berto, 'Mar-de-Leva'


 

Pedra do Homem, 2007



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