Tem sido muito referido o trabalho que o Público publicou no último domingo – da autoria da jornalista São José Almeida – e que atribui a Sócrates a autoria da eliminação da oposição interna no PS. Julgo que esta ideia, que fica como a ideia forte do referido trabalho, tem uma evidente má relação com a realidade. Julgo mesmo que acusar Sócrates da autoria desta secagem da oposição interna é a mais injusta de todas as acusações que lhe podem fazer.
A oposição interna no PS não existe há mais de uma década. É uma relíquia de um passado que não volta. Tal como o debate político. Aliás, não percebo como poderia existir oposição interna num partido que secou definitivamente o debate político, após a bem sucedida campanha dos Estados Gerais para um Nova Maioria?
Quando falo de secar o debate falo da sua eliminação nos locais onde ele existiu em tempos e nos quais era mais eficaz: falo das organizações ao nível concelhio e no processo que se iniciou no período pós 1985. Estou, aliás, plenamente convencido que o momento marcante do regresso ao poder do PS nas eleições de 1995 não foram o Estados Gerais mas sim a campanha eleitoral autárquica de 1993, que permitiu ao PS conquistar um grande número de municípios importantes e tornar-se o maior partido autárquico. (Esta tese não é defendida, ao que sei, por quase ninguém, embora não seja impossível encontrar algum especialista em lugares comuns a debitar algo do estilo: “bom, todas as contribuições tiveram a sua importância…") Coordenou essa campanha, cujo lema era "As pessoas primeiro" um então jovem deputado de nome José Sócrates. Nesse período o PS era um partido aberto à participação de todos os cidadãos e receptivo ao debate. A paupérrima organização interna, o muito baixo nível de militância e o previsível longo afastamento do poder – Cavaco estava, por essa altura, de pedra e cal e o Partido Comunista ainda era esmagadoramente maioritário no Alentejo – criavam as condições propícias à receptividade das contribuições exteriores e à abertura à sociedade civil. Não havia nada para distribuir e quem se aproximava do partido não vinha por interesse e não constituía um perigo já que a expectativa de partilha das prebendas do poder era apenas... uma miragem. Nas eleições autárquicas de 1993 houve distritos, como o de Setúbal, em que o PS praticamente só candidatou independentes e nalguns casos nos lugares elegíveis não figurava qualquer militante. Esta realidade tinha reflexos na vida interna do partido e na intervenção partidária ao nível local mas, em boa verdade, não se repercutiu nos níveis superiores de direcção. As estruturas distritais, poderosas a distribuir lugares e a nomear pessoas nos períodos em que o PS está no poder, mantiveram o processo sob controlo. Por essa altura o PS era um partido, com a influência de muita gente vinda da sua esquerda e que não se identificava com o PCP, com um tipo de intervenção com um pendor muito mais social-democratizante, com um discurso inovador na gestão autárquica, introduzindo a crítica ao peso dos interesses da especulação imobiliária na gestão municipal – a gestão comunista no Alentejo, sobretudo no Litoral, era um bom exemplo – em detrimento de uma lógica de planeamento e de defesa do interesse público, introduzindo a necessidade de reformar o próprio modelo de governação municipal, tendo em 1993 apresentado pela primeira vez uma alternativa ao sistema vigente.
Mas, em 1995 o PS ganhou as eleições com Guterres, e com Jorge Coelho, e com uma legião de ex-comunistas que foram directamente cooptados para o nível de direcção, sem terem passado por qualquer nível de militância inferior. O caso Pina Moura é apenas o mais conhecido e o mais bem sucedido, transformado num ápice de ex-futuro-próximo delfim de Cunhal em Cardeal de Guterres.
Com o poder na mão o PS esqueceu rapidamente os tempos das agruras da oposição e parte significativa das promessas que fizera. Esqueceu, sobretudo, os hábitos do debate interno que o ajudaram a recuperar da letargia em que mergulhara na longa travessia do cavaquismo. As sedes do PS passaram a ser locais mais inacessíveis e os independentes, com anos de militância no partido, passaram a ser vistos como new commers, a serem olhados de soslaio, encarados como concorrentes aos lugares de nomeação política e/ou aos lugares nas listas de deputados. Ainda hoje está por entender bem o significado da famosa frase de Guterres "no Job for the boys", ele que presidiu a um Governo que nomeou milhares de boys, muitos dos quais tinham permanecido tranquilos em casa quando o PS se arrastava pela oposição, entretidos a limparem o pó ao carácter histórico da sua ligação ao partido. De um período em que encontrar um candidato autárquico era uma verdadeira epopeia o PS, em 2007, passou a deparar-se com a necessidade de escolher entre vários candidatos ao mesmo lugar. Isto apesar do debate interno se ter tornado residual quando não nulo. Os níveis inferiores do partido – abaixo do nível distrital – deixaram de ter qualquer possibilidade de discutir as questões políticas. O Governo passou a ser o nosso Governo e a única atitude aceitável passou a ser o silêncio e o conformismo. Discutir, questionar, propor alternativas eram iniciativas que só podiam levar à desestabilização e que levariam, a serem prosseguidas, à criação de problemas ao “nosso Governo”. As Comissões Políticas Distritais – distribuídos todos os lugares disponíveis desde os administradores das empresas desconcentradas da Administração Central aos simples directores de Centro de Emprego – quase sempre tuteladas pelo Governador Civil em exercício, trataram de garantir que tudo voltava ao ritmo normal. Ao silêncio e ao conformismo militantes. Julgo que este processo, cuja responsabilidade maior não pode deixar de ser assacada a Guterres enquanto secretário-geral do PS, teve o seu mentor e principal executante em Jorge Coelho, por essa altura a iminência parda do partido para as “questões da organização interna”. Apoiado por alguns ex-comunistas com uma longa experiência do centralismo democrático, e ele próprio com a origem na extrema-esquerda, constituiu um sólido núcleo central que passou a submeter todo o partido. As organizações distritais foram fundamentais para concretizar esse trabalho com a tecitura de uma teia de fidelidades ao nível concelhio.
No final da experiência guterrista o partido estava de rastos e o debate político interno não era mais do que uma reminiscência do passado. O PS tinha acabado o ciclo em que evoluíra, rapidamente, de um partido de militantes para um partido de eleitores. Desde essa altura as organizações concelhias passaram a ser dispensáveis até porque as campanhas eleitorais já não dependem do esforço militante, as agências tratam de tudo incluindo os figurantes para as televisões. Quando Sócrates venceu as eleições para Secretário-Geral não foi porque tivesse apresentado o melhor programa ou o melhor projecto ou qualquer projecto. Pura e simplesmente todos os cidadãos inscritos no PS sabiam que ele era o melhor colocado para levar o PS de novo ao poder. Essa era a única questão que interessava: o acesso rápido ao poder. Não para transformar a sociedade, para aplicar o programa do partido, para concretizar esta ou aquela política concreta mas, tão somente, para, estando no Governo, permitir que cada um dos cidadãos inscritos pudessem ascender a um qualquer nível de poder de acordo com as suas capacidades. Infelizmente, como muitas vezes acontece, muito para lá das suas capacidades.
O PS não tem hoje qualquer programa que não seja gerir melhor do que o PSD a mesma coisa: o Governo. Na Educação, na Justiça, na Saúde, nas políticas territoriais, nas questões económicas, na promoção da justiça social, no combate às desigualdades sociais, no combate à corrupção, o PS não se distingue de qualquer outro Governo do PSD ou do PP, que tenham governado o País. Apenas na eficácia que é a imagem de marca socrática. Eficácia no combate ao défice essa nova grande realização do engenho socialista. Eficácia que pode, ao que parece, ser medida independentemente do conteúdo das políticas. Independentemente do número de desempregados, do aumento das desigualdades sociais, da contínua divergência com a UE. Sócrates sabe melhor do que ninguém que só isso interessa à esmagadora maioria dos cidadãos que integram o seu partido. Se ele governa à esquerda ou à direita, isso é pura e simplesmente irrelevante. O que interessa é que governa e com sucesso, seja lá isso o que for. O que interessa é que os outros estão atrapalhados, incapazes de dar a resposta adequada como acontece com o PSD. Não existe nada que mais encha de orgulho um socialista. O facto de isso acontecer por a governação ter virado à direita não é suficiente para diminuir esse orgulho. Qualquer cidadão socialista sabe que as coisas são assim porque não podem ser de outra maneira, porque são assim em todo o lado, por causa da Europa, por causa da globalização e etc. Se argumentarmos com o facto de ser este o partido socialista mais à direita no contexto europeu, de ser o menos social-democrata – uma tragédia para este país e um maná para os muitos interesses que vampirizam o Estado – a generalidade dos cidadãos inscritos no PS ou que votam PS encolherá os ombros.
Por isso, apenas por estupidez muito superior ao normal, Sócrates teria necessitado de calar a oposição interna. Manuel Alegre, como se vê com o seu famigerado milhão de votos à deriva, é a oposição que faz falta para não haver oposição. Em tempos dizia-se que com Alegre estava assegurada a discussão suficiente para não haver discussão nenhuma. Entretanto as coisas pioraram. Não existe oposição interna e Sócrates com a sua aspereza seria capaz de afirmar que ninguém no seu juízo perfeito gasta energias a combater adversários que estão antecipadamente vencidos.
E depois a política, enquanto actividade profissional, é uma actividade que depende sobretudo do bom comportamento. É uma carreira curta mas que paga bem, mesmo depois de ter aparentemente terminado, veja-se o percurso de tantos e tão afamados gestores públicos e privados. Mas, para isso é preciso muito tento e muita prudência e a necessária flexibilidade da coluna. Ora, no PS todos conhecem Sócrates e o seu staff. Todos sabem que quem se mete com eles – com o PS, como dizia o o outro - mais tarde ou mais cedo paga-as. Se quisermos encontrar um bem escasso na política é a coragem que devemos procurar . Coragem que não abunda na generalidade do pessoal político – e o PS não é excepção – e que olha para política como quem olha para a sua carreira. Todos sabem, as excepções contam-se pelos dedos de uma mão com poucos dedos, que o lugar que ocupam não é fruto do mérito individual e todos sabem que se há lugar em que a meritocracia não se aplica é na política.
Quem falou em mordaça à oposição interna?
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