na revista Vírus - revista lançada pelo BE e disponível apenas online - Francisco Louçã escreve, a propósito dos 50 anos da publicação de "Mitologias" de Roland Barthes, um artigo cujo título é "O avesso do mundo segundo Barthes - O marxismo contra a criação dos mitos ". Cito: "Os cinquenta anos da publicação de “Mitologias”, o livro que chamou a atenção para Roland Barthes, foram escassamente evocados entre nós. A febre comemorialista, por saturação, por fastio ou simplesmente porque Simone de Beauvoir ocupou o espaço reduzido a que as ideias francesas têm direito, deixou escapar o acontecimento, que ficou sepultado em páginas interiores de suplementos culturais nalguma imprensa internacional e, salvo qualquer excepção que não conheço, foi olimpicamente ignorado pela imprensa portuguesa, mais preocupada com impantes banalidades. Faltou Eduardo Prado Coelho para o lembrar. É uma injustiça e isso ainda é o menos. É sobretudo a perda de uma oportunidade de reflexão que é hoje tão actual – ou mais – do que há meio século.(...)
O livro pretendia juntar obsessivamente as evidências deste mundo em que se multiplicam os símbolos e em que, significativamente, os mais significativos são os mais vazios. Esse processo de esvaziamento é a construção de mitos. E a construção de mitos é uma forma de subjugação, pois é “uma das nossas servidões maiores: o divórcio assustador entre a mitologia e o conhecimento. A ciência vai depressa e direita ao seu caminho; mas as representações colectivas não seguem, elas têm séculos de atraso, e são mantidas estagnadas nos erros pelo poder, a grande imprensa e os valores da ordem” (de “Mitologias”). O mito é uma linguagem, e por isso é uma gramática, um símbolo do mundo dos símbolos.(...)
A questão das questões, então, é saber como é que mitos débeis como estes podem organizar a ideologia de uma sociedade, e em particular de uma sociedade de comunicação intensa, em que precisamente os mitos são a linguagem. A resposta é essa, porque são débeis, podem organizar uma simbologia, construir adesões e portanto criar uma cultura. Esse tinha sido o tema da terceira geração do marxismo, a do virar da metade do século XX, com os trabalhos da Escola de Frankfurt (Adorno, Horkheimer e outros).O que Adorno como Barthes procuravam era uma nova interpretação para esse paradoxo: como é que mitos débeis podem organizar uma opressão forte numa sociedade complexa.(...)
Os estudos de Karl Marx sobre a alienação e a ideologia podem trazer algum esclarecimento a este percurso da teoria e do debate. Foi num texto de 1844, os Manuscritos Económico-Filosóficos (ou Manuscritos de Paris), que Marx discutiu pela primeira vez de uma forma sistemática o seu conceito de alienação.(...)
Os Manuscritos explicavam a alienação como uma característica socialmente generalizada pelo capitalismo, ao condicionar o processo produtivo à acumulação de capital, levando à perda de controlo do trabalhador sobre o processo e sobre o produto do seu trabalho. Nesse sentido, a perda de autonomia no processo produtivo corresponde a uma socialização intensa, mas ao mesmo tempo a uma apropriação dessa socialização pelo capital.(...)
Na sua análise da alienação, Marx inspirava-se no livro de Feuerbach sobre a “Essência do Cristianismo” (1841), que defendia a ideia de que Deus tinha alienado as características dos seres humanos. Essa transposição e apropriação era portanto a essência da perda que a alienação representa.No capitalismo, a alienação exprime a contradição entre a produção socialmente organizada e a apropriação privada, raiz da exploração e também da ideologia conformista que submete o trabalho. A alienação decorre assim da produção mercantil (...)
Althusser, o papa do estruturalismo, rejeitava o conceito de alienação como sendo idealista, uma contaminação hegeliana que perturbava o pensamento marxista. Abandonava assim a reflexão sobre a essência do capitalismo, o que explica simultaneamente a sua capacidade organizadora das relações sociais e a vertigem mitificatória que o sustenta. Barthes, em contraste, retoma a teoria da alienação e da ideologia nas suas Mitologias, para concluir que o universal burguês é a expressão deste movimento: “o estatuto da burguesia é particular, histórico: o homem que ela representa será universal, eterno (…). Enfim, a ideia primordial de um mundo perfectível, móvel, produzirá a imagem invertida de uma humanidade imóvel, definida por uma identidade infinitamente recomeçada.” O mundo burguês é a fantasia da eternidade – é um mundo que cria uma indústria de comunicação baseada na mitificação.(...)
Barthes chega assim à conclusão fiel ao seu estruturalismo heterodoxo que explora a semiologia, o sentido dos signos, de que o mundo seria composto por sinais decifráveis, e esses sinais são precisamente os mitos. Onde a ideologia se quer disfarçar, é precisamente onde pode ser revelada. A colecção de ensaios compilados em Mitologias dedica-se a essa desconstrução do sentido das imagens e mensagens, e do seu sistema de comunicação.(...)
E, cinquenta anos depois, quando a sociedade moderna (Boaventura Sousa Santos diria pós-moderna) se afirma como um sistema de produção contínua de mitos, a análise da alienação deve combinar o que Marx conhecia – o fetichismo da mercadoria e a submissão do trabalho alienado – e o que se tornou o modelo de comunicação do fetichismo.(...)
O fetichismo da mercadoria faz emergir a fetichização das relações sociais como expressão da mercadoria. Esta socialização anacrónica e individualizada, que não deixa de ser socialização, manifesta o triunfo do mercado e dos seus mitos. Mitos com pés de barro, porque são decifráveis e porque são portanto descontruíveis e destrutíveis. O simples facto de Barthes os ter já enunciado há cinquenta anos atrás, coleccionando os mitos banais que alimentam a comunicação alienada, é a prova de que a crítica das armas é a razão da arma da crítica."


 

Pedra do Homem, 2007



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