Muitos ex-defensores do sacrossanto mercado têm mudado de agulha passando a defender a necessidade de regular os mercados e acusando mesmo os Estados, pasme-se, de terem fracassado nessa sua tarefa. Nalguns casos trata-se de uma mudança radical vendo-se mesmo ortodoxos do mercado infalível a recorrerem a Keynes para explicar a actual situação. Mas a ninguém tinha ocorrido a peregrina ideia de atribuir aos pobres a ocorrência da crise. Tinha que ser o historiador Rui Ramos na sua tribuna do Público - 17-09-2008 - a vir apresentar ao mundo a tese que Bush e os seus apaniguados ainda não tinham considerado. A crise, segundo ele, terá resultado do facto de os gananciosos - os que concedem crédito - terem admitido à "festa mais gente do que, segundo parece, aconselhava a prudência. Para ganhar dinheiro, claro, e não por altruísmo — e é por isso que muitos, para quem o motivo do lucro é um crime em si, se recusam a reconhecer o que tudo isto, no fundo, foi: uma democratização insustentável da riqueza. Donde veio o famoso subprime, a não ser dos mecanismos inventados para fazer chegar crédito àqueles a quem um banqueiro à antiga nunca teria dado uma hipoteca ou um cartão? Os poderes públicos ajudaram, com políticas monetárias generosas (sobretudo na América).A ganância não ficou por aqui. Os irresponsáveis transferiram os empregos que a maioria de nós já não queria para outras partes do mundo, onde foi possível manter baixos os preços do que nos apetece comprar. Assim, e contando com o Estado social para as demais necessidades, pudemos consumir roupa, electrodomésticos, férias e empréstimos sem pensar demasiado nos custos. As redes de balcões de crédito, os novos bairros, os centros comerciais, com os seus hipermercados e agências de viagem, eram só para os “ricos”? Caro leitor: se a proverbial hipocrisia de Baudelaire o não cegou completamente, sabe muito bem que não. Havia pobres? Havia, e não vou discutir se eram ou não “relativos”. Mas sem os gananciosos vai deixar de haver pobreza?Admitamos que tudo foi loucura. Como voltar aos eixos? O mercado, explicam-nos, não se corrige si próprio. Cabe aos funcionários públicos corrigi-lo. Eis uma ideia curiosa. Porque é precisamente o contrário que vemos: o mercado está a corrigir-se (daí os colapsos bancários), e a intervenção do Estado (do género a que o Tesouro americano finalmente se escusou no caso do Lehman Brothers) é desejada ou exigida precisamente para evitar essa correcção. A fim de poupar os “ricos”? Não: a fim de poupar os “pobres” que se habituaram a viver acima das suas possibilidades. Ou seja, espera-se que o Estado use o seu poder para conservar e garantir os resultados da irresponsabilidade e da ganância(...)".

A teoria de Rui Ramos, se a esse estatuto pode aspirar, é em síntese a de que sem os pobres e sem a loucura dos capitalistas gananciosos, e lá no fundo com o coração mole, lhes terem pretendido alimentar os vícios nada disto se teria passado. Quem reagiu a este despautério foi José Vítor Malheiros, o jornalista do Público, que no passado dia 23 escreveu um artigo cujo título era exactamente: "Subprime: a democratização do crédito?" Trata-se de uma resposta, sem nunca o citar, ao artigo de Rui Ramos.

"O subprime não surgiu devido a um fervor democrático ou um desejo igualitarista por parte dos bancos e de outras instituições de crédito de estender também aos mais pobres os benefícios do crédito de que apenas os ricos e os remediados tinham beneficiado durante séculos.O subprime surgiu porque um banqueiro um dia olhou para um gráfico dapopulação nos Estados Unidos e constatou que havia umas dezenas demilhões de pessoas que os bancos não estavam a espremer - apesar de,esporadicamente, estas pessoas terem uns dólares a mais no bolso e depossuírem as mesmas aspirações e desejos dos outros seres humanos: umacasa para morar, por exemplo.A questão era: por que razão extorquir apenas o dinheiro dos mais endinheirados? Porque não tentar sacar aqueles escassos dólares que se amontoavam nos bolsos dos mais pobres? Porque não ordenhar também os mais pobres (para usar uma expressão que os gestores apreciam, ainda que usualmente em inglês, to milk the costumers)? Afinal, aqueles dólares todos juntos representavam uma maquia apetecível. Havia o pequeno problema de estes clientes poderem não conseguir pagar, mas isso não era nada que uma taxa de juro mais elevada não pudesse compensar. Bastava cobrar aos mais pobres um juro mais alto de forma a obrigá-los a pagar, digamos, cinquenta por cento acima do que se cobrava aos mais abastados (sim, acima). Para mais, havia sempre a possibilidade de o banco retomar possessão da casa, caso a hipoteca não fosse paga. E assim se fez. É claro que este mercado (a eufemística expressão inglesa subprime significa “não é bife do lombo”) teve os seus problemas, revelando a Mortgage Bankers Association dos EUA, no final de 2007, que se verificavam sete vezes mais execuções de hipotecas neste segmento que nos restantes, mas o essencial foi conseguido: os pobres estavam a ficar realmente mais pobres e os dólares que lhes saíam dos bolsos estavam a entrar nos bolsos dos bancos. O segmento subprime estava finalmente a ser explorado.O problema foi que, como os bancos transaccionam estes empréstimos na bolsa e esta revelou um enorme apetite pela avalanche de hipotecas fresquinhas, os bancos entusiasmaram-se e começaram a emprestar a juros cada vez mais altos a quem não tinha emprego nem dinheiro, para comprar casas que não valiam nada. Como os bancos e os gestores eram avaliados (pelas bolsas e pelos seus accionistas) pelos resultados imediatos e não pelos efeitos de longo prazo, estas manobras foram uma bênção para o sector financeiro durante uns anos: havia mais“clientes”, mais “valor bolsista”. Mas o mercado imobiliário acabaria por cair e a catástrofe adiada aconteceu, dando origem à bola de neve que se conhece. A bomba acabou por estoirar no bolso do sistema financeiro. Dizer que a crise do subprime foi provocada pela “democratização do crédito” é não só falso como desonesto. O poder estava e continua a estar apenas de um dos lados da equação. Os pobres que conseguiram ir pagando a sua casa pagaram-na mais cara que os ricos (mesmo os que nunca falharam uma prestação) e muitos deles perderam simplesmente as suas prestações para os bolsos de gestores e accionistas dos bancos -e perderam as casas. Houve um robin dos bosquismo ao contrário e nenhum benefício para a economia. O facto de as coisas não terem resultado para os bancos - ainda que tenha resultado para muitos dos vilões -não faz deles as vítimas. E o facto de alguns indigentes terem tido crédito não torna o episódio “democrático” - é apenas um sinal da falta de escrúpulos das empresas envolvidas e da falta de controlos dosistema financeiro"

Colocada na ordem a evidente falácia que subjaz à análise de Rui Ramos a tese parecia ter morrido por ser de dificil defesa, tão evidentes eram as falsidades de que se alimentava. Mas não, hoje no Público José Manuel Fernandes volta em força a bater no ceguinho. Foram os pobres senhores, grita JMF, colocado pela homilia de RR perante a "explicação", para, em síntese, esclarecer os leitores que:
" Os detractores do "ultraliberalismo" americano não podem ignorar que o tipo de crédito de risco que está na origem da crise foi uma invenção do "quase socialista" Roosevelt. Para quê? Para ajudar os mais pobres a comprar casa por via da sua garantia por agências estatais."

Oh não, os pobres, outra vez os pobres. Sem esses malvados e sem a ideia peregrina de lhes alimentar os vícios como seria bom este mundo. RR revisitado.
Talvez devessemos recomendar a JMF que lesse JVM, e não apenas uma parte do que se escreve no seu jornal. E reflectir nas razões que levam os bancos, por si só e não por nenhuma recomendação ou disposição socialista como sugere, a alargar o crédito às camadas mais pobres - que JVM bem explica - e às condições em que o faz. E recomendar-lhe que faça um esforço para tentar perceber que o negócio do crédito à habitação é o maior negócio dos bancos portugueses -65% dos activos dos 5 maiores bancos portugueses em 2005 de acordo com o BP - sem o qual não existiriam. E que as pessoas que compram casa nas actuais condições o fazem num contexto de falta de alternativa, por demissão dos poderes públicos na defesa dos direitos constitucionais dos mais desfavorecidos, que apenas interessa à banca. Dizer-lhe que as pessoas em média pagam pelas casas mais do dobro do seu valor - num empréstimo a 30 anos, aumentando rapidamente sempre que se aumenta o prazo de amortização - que incorpora uma componente especulativa a que a banca não é estranha já que é ela que impera nos negócios especulativos associados ao mercado de solos e à captura das mais-valias simples por via das mudanças de uso. Por fim recomendar-lhe que estude (ou leia o que outros escreveram e estudaram) o que se passa noutros países europeus em que as políticas públicas de habitação tornam este "negócio" menos apetecível para a banca e mais amigo dos cidadãos. Países em que existe uma segmentação do mercado de habitação que se adapta aos diferentes grupos sócio-ecoómicos que existem na sociedade. Aquilo que os amigos do mercado classificariam como países em que existe equilíbrio entre a oferta e a procura porque a acção reguladora do Estado a isso conduz.


 

Pedra do Homem, 2007



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