O sismo no Haiti coloca-nos a todos nós, à escala global, perante um horror indescritível e torna mais evidente aos nossos olhos as fragilidades e as fraquezas que revelamos, ao nível mundial, quando se trata de prestar ajuda aos que são atacados pelas catástrofes. No caso do Haiti ainda bem que os EUA reagiram como estão a fazer, mobilizando os recursos que mobilizaram para ajudar os haitianos. A resposta dos EUA não tem paralelo com a de qualquer outro pais e refira-se a pobreza da resposta da União Europeia cuja incapacidade ficou mais uma vez tristemente evidenciada, sendo patéticas as preocupações do senhor Sarkozy, preocupado ao que parece com a eventual ocupação militar do Haiti pelos EUA - uma pontada anti-imperialista que o terá atacado - e com a falta de consideração pelo papel da França. Patético. Nestas alturas apetece dizer que somos todos solidários com os que ajudam de facto, sejam eles amerianos, cubanos, israelitas ou outros, independentemete das realidades políticas de cada país e das nossas simpatias.
Na realidade, e a salvo de qualquer avaliação/revisão ideológica, os sismos são fenómenos naturais.
Não são seguramente é catástrofes naturais muito menos são naturais as catástrofes que os sismos provocam. São catástrofes que, como no caso do Haiti mais uma vez ficou demonstrado, são provocadas pelas construções edificadas pelo Homem e pelas opções que os homens tomam quando se trata de decidir sobre os locais inde se pode construir, entre outros aspectos.
São essas construções que esmagam e matam os haitianos e os que lá viviam e trabalhavam, como o fizeram nos últimos anos noutros locais de Kocaeli, na Turquia em 1999, com a destruição de mais de 50% dos edificios de construção recente em betão armado e com cerca de 40 mil mortos, passando por Kobe no Japão em 1995 com 6400 mortos, peloMéxico em 1985, por Marrocos em 2004 ou por L'Aquila em 2009, podendo-se referir muitos outros casos, infelizmente.
Há consequências específicas em cada local afectado por um fenómeno sísmico potenciadas por razões naturais como as caracterisiticas dos solos mas também por razões associadas ao nível de desenvolvimento da sociedade que aí existe. Há casos em que os prejuízos materiais adquirem uma muito maior expressão do que as perdas em vidas humanas, enquanto noutros locais reduzidos prejuízos materiais se traduzem em monstruosoas perdas em vidas humanas como é o caso do Haiti. Claro que essas diferenças são muitas vezes a manifestação de diferentes níveis de desenvolvimento das sociedades e da existência de estados falhados, incapazes de organizarem de forma justa a vida dos seus cidadãos.
Mas não há uma geografia pró ou anti-imperialista que nos permita ver com mais clareza e compreender melhor este tipo de fenómenos e as catástrofes a que podem dar origem. Nem preparar melhor a resposta que os sismos deviam merecer.
Há factores humanos que relevam da acção política que potenciam o carácter catastrófico resultante da ocorrência de um sismo. Factores que resultam daquilo que se faz e daquilo que se omite. Mas existe uma desigualdade geográfica associada a diferentes características geológicas que se pode medir num risco sísmico diferente de região para região e que dentro do mesmo país nos permite diferenciar as regiões por níveis de risco sísmico.
A resposta que nos permitirá lidar melhor com este tipo de fenómenos e com as suas consequências tem que começar a ser preparada antes do fenómeno natural tornar violenta a dimensão das nossas fragilidades.
Para os Haitianos, esmagados pela catástrofe, pouco interessam estas reflexões. O que lhes importa é a mão amiga que lhes traz comida, água, assistência médica ou que os ajuda a libertarem-se dos sarcófagos de betão em que estão encurralados. A mão amiga e salvadora. Interessa-lhes o agora independentemente de todas as outras considerações. Um dia mais tarde poderão discutir essas questões. Mas há tantas coisas tão básicas por resolver. Coisas que apenas ficaram mais visíveis depois do sismo mas que já eram a imagem de marca da sua sociedade, marcada por uma pobreza extrema, pela corrupção, pela ausência de qualquer expectativa de um futuro melhor. Uma sociedade atrozmente injusta.

Em países com níveis de desenvolvimento milhares de vezes superior ao do Haiti, como o nosso, um sismo desta magnitude, com o epicentro perto de uma da falhas que atravessa o território continental, provocará uma severa destruição, traduzida em muitas dezenas de milhares de mortos e num brutal empobrecimento do país. Mas a probabilidade dele ocorrer é baixa dir-se-á. Pois é, no Haiti tinha ocorrido um sismo muito severo por volta de 1755...

Para evitar essas consequências devastadoras é necessário promover a acção baseada no conhecimento e no rigor e na exigência na aplicação desse conhecimento. É necessário que cada um de nós e a sociedade no seu conjunto saibam distinguir aquilo que é fundamental do que é acessório. Ora, como o debate público tem mostrado, sempre que se fala de sismos, ou mais em geral da edificabilidade, o acessório mostra que está confortavelmente instalado e que veio para ficar. Como dizia ontem o professor João Duarte Fonseca, no programa Prós e Contras, existe uma contradição insanável entre o elevado período de retorno dos sismos e o curto período de retorno dos políticos, que é de 4 anos como se sabe. Essa contradição tem tido consequências em áreas do conhecimento e da acção política pública que têm sido descuradas de forma chocante e cuja promoção tem que ser e é uma responsabilidade pública através dos laboratórios públicos. Por exemplo um mais apurado conhecimento da susceptibilidade sismológica das áreas mais sensíveis do território particularmente das zonas próximas das falhas que o atravessam. Ou o controlo e monitorização dessas falhas. Acresce o facto de apesar de existir um sólido conhecimento técnico e cientifico ao nível da engenharia civil na área da sismologia em Portugal, existe um caldo de cultura que torna esse conhecimento dispensável e até inconveniente para o normal dia a dia da sociedade e para a actividade normal de construção. Dispensabilidade que resulta da acção política da esquerda e da direita - irmanados da mesma ignorância - que tem diabolizado a engenharia civil portuguesa através de uma perspectiva parola e modernaça do processo construtivo e da responsabilidade, importância e nível de preparação exigível aos diferentes técnicos que nele intervêm. Falo em particular da sinistra ideia de deixar a verificação da aplicação dos regulamentos sísmicos no projecto de estruturas ao livre arbitrio dos técnicos que o podem fazer e ao interesse de quem os contrata. Uma possibilidade funesta que tem expulso do mercado, literalmente, milhares de técnicos altamente qualificados substituídos por outros de formação ... mais aligeirada.
Quando se passa o tempo a discutir a protecção civil que, no essencial, é uma paródia com a sua municipalização, abdicamos de tomar a decisão de nos protegermos. Por exemplo começando por um programa de reforço sísmico do parque escolar, como parte essencial de um programa de reconstrução das escolas. Estendendo depois essa intervenção a todos os edificios públicos particularmente os da área da saúde e indo por aí fora. E sendo implacável com as construções particulares que devem ser, na fase de licenciamento, objecto de verificação e de certificação do ponto de vista estrutual. Feito por entidades qualificadas de forma a permitir que fiquem no mercado os tecnicos mais competentes. Trabalho que não pode ser feito pelas autarquias cuja incompetência nesta matéria, e noutras, é notória.
Há, pois é, isso levava mais tempo e não dava para as eleições. É a tal questão do período de retorno. Os sismos e os políticos não se encontram neste país e isso tem sido assim quer os políticos sejam mais à esquerda ou mais à direita. A ignorância não tem sido sectária neste particular.

PS - a menos de um anúncio mais formal por parte da administração deste blogue faço com este tema sobre o qual escrevi várias vezes ao longo de cerca de 4 anos, para muito poucos leitores convenhamos, a minha última participação. Que aliás é já uma pós-participação já que a decisão tinha sido tomada algumas semanas atrás. O Pedra do Homem foi um prazer pessoal e um exercício de cidadania à maneira de cada um de nós. O resto são cantigas.


 

Pedra do Homem, 2007



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