Polissulfato de mucopolissacáridos


Apesar de já ter ficado com o pé direito virado ao contrário numa calha de um campo de ténis, tardo em aprender que existem actividades bem mais saudáveis do que a prática desportiva. Por isso, continuo a dedicar-me às modalidades do corpo, entremeando o ténis com o futebol, o mergulho com o basquete e a fisioterapia com todas elas.

Quando era mais novo – e arrogante e orgulhoso e apaixonado, como acontece sempre que nos julgamos mais novos – desafiava de igual para igual todos os centímetros de qualquer campo de ténis, entregue a mim mesmo e à pomada oficial da selecção nacional alemã de futebol. Não sei, mas talvez achasse que, untando-me com tal mistela, auferiria, como que por osmose, da eficácia e competência estóica daqueles Homens-máquinas, intocáveis intérpretes de futebol naqueles tempos, a meus olhos.

À medida que fui envelhecendo, tornei-me mais céptico quanto à verdade instituída, o meu corpo mais frágil face aos elementos externos e os amigos alemães menos infalíveis contra as selecções de pequenos países periféricos do sul da Europa. O meu mundo desleixou-se, os alemães “deslixaram-se” e chegámos aos dias de hoje.

Ganhar ou perder não importa: o que interessa é participar! É com base nesta insigne mentira que muita gente perde o seu tempo e a sua saúde em pavilhões desportivos, campos polidesportivos, estradas de montanha e encontros românticos. Reportando-me ao primeiro caso apresentado, foi devido à profunda tibieza do físico que ontem regressei de um jogo de futebol como um veterano das trincheiras da Primeira Grande Guerra. À falta de condecorações, optei por procurar alguma coisa que me aliviasse as dores e prevenisse o recurso a uma epidural no São Francisco Xavier. Longe da pomada dos panzeres, busquei algo mais trivial. E, pela primeira vez na minha vida, não encontrei uma bisnaga de Hirudoid em minha casa. Dirigi-me à minha mãe, fiel depositária da mastodôntica farmácia caseira, e inquiri sobre a milagrosa droga. As certezas não foram muitas, “havia de estar lá p’ ra dentro”, que não, não estava, não havia!

O Hirudoid é assim mesmo: anónimo, incompreendido, insondável nas suas propriedades clínicas, uma fé cega sem contra-indicações nem lugar marcado. Não tem direito a caixa ou a lugar privilegiado em casa: a bisnaga encontra-se sempre retorcida, dobrada em mil voltas em direcção à tampa, com a pintura esfolada nas extremidades, prisioneira do fundo de uma certa gaveta órfã da benigna gordura do unguento, remanescente da última utilização.

Prestimosa, minha mãe não perdeu tempo a admitir a falha e a repará-la com brio. No dia seguinte vi, fascinado, essa palavra trissilábica na receita médica do meu contentamento, legitimada superiormente pelo cromo com o código de barras, preta larga, branca branca, preta fina, fina branca, dupla preta, M, 1, 2, 4, 8, 9, *, que identifica os nossos médicos na via verde das caixas registadoras das farmácias.



No século XXI, já ninguém pede um Hirudoid. Querem-se analgésicos, anti-inflamatórios, anti-reumatismais, antipiréticos, orçamentos rectificativos e comboios de alta velocidade. O Hirudoid não é nada disso. É humano. É antigalo e nódoa negra. Combate os males dos idosos, os nossos professores nesta vida e a quem tudo devemos; e apazigua as obrigações das nossas crianças, a única prova de que realmente existimos e de que podemos acreditar em qualquer coisa que gostamos de chamar amor.

Sempre que o utilizo recordo-me daqueles turistas que, uma vez longe da pátria de Luís Figo e de Zé Maria, procuram o primeiro botequim português para “matar as saudades” com um pastel de bacalhau e um Sumol. Ainda que não bebam Sumol em Portugal desde os tempos em que enfileiravam a Mocidade Portuguesa. Tal como o Sumol, o chocolate para o leite Milo, os Fogões Meireles e a pasta medicinal Couto, o Hirudoid faz parte desse imaginário colectivo de saudosistas inveterados, eternas segundas escolhas, hipóteses desesperadas de que invocamos saudade na esperança de nunca as termos.

A embalagem continua um clássico, longe da fúria remodeladora dos nossos dias, ora ditada por política de marketing, ora por marketing político. O fundo é alvo, o nome vem escrito a azul escuro q. b. numa fonte ultrapassada, acima, um risca vermelha a rematar e a dar início à tampa de uma ingénua enormidade.

Lá dentro, a pomada em tons branco-hirudoid. E o cheiro? O cheiro é a minha infância, um final de tarde solarengo em que um maldito escorrega resolveu mexer-se quando lutava com os outros miúdos pela primeira descida.

O Hirudoid é só uma pomada, um carinho que se dá ao corpo em complemento ao gelo, ao chá e às torradas, as melhores drogas para qualquer mal de corpo e espírito. Para uso externo, sem casos de sobredosagem conhecidos e sem efeitos sobre a capacidade de condução de veículos e utilização de maquinaria pesada. Quanto a estes dois últimos casos, com muita mágoa minha.

Hoje, já não há escorregadelas que me animem ou torradas que me curem. Tenho memória, recordações, o mundo e um sol a nascer todos os dias.


Publicado originalmente a 27 de Junho de 2001, na edição n.º 53 do jornal regional "Sudoeste"


 

Pedra do Homem, 2007



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