"(...) No fundo do corredor, no outro extremo desse andar, há um quarto grande e comprido, orientado de este a oeste no sentido do comprimento, e todo atravessado pela luz que vem do mar. É um quarto simultaneamente luminoso, esverdeado e sombrio. Nas suas penumbras brilham pontos de oiro. E há reflexos vagabundos que vagueiam entre loiças, vidros, pratas, espelhos. No ar paira o perfume que sobe de um frasco de vidro doirado e preto que alguém deixou destapado.
Uma nuvem de fumo azul sobe muito lentamente. O quarto está cheio de livros empilhados nas mesas, na estante e mesmo nas cadeiras. Livros de capas amarelas e brancas e cinzentas. Alguns, dobrados ao meio, mostram a cor de trigo do papel e o desenho contínuo e cerrado das letras.
O quarto tem algo de glauco e de doirado como se nele morasse uma mulher de olhos verdes e cabelos loiros, leves e compridos, de um loiro brilhante e sombrio, e cujo perfume é o perfume do sândalo. A beleza da sua testa é grave como a beleza da arquitrave de um templo. Nos seus pulsos há um quebrar de caule. Nas suas mãos, através da finura da pele e do azul das veias, o pensamento emerge. Nesse quarto se vê a pausa em que o instante, de súbito, surpreende e fita e enfrenta a eternidade. E ali se vê o brilho vivo que navega no interior da sombra. Ali se ouve a linguagem que, como nenúfar, aflora à tona das águas paradas do silêncio. Porque o quarto sussurra como se fosse o interior de uma tília onde palpitam miríades de folhas verdes cujo reverso é branco e que batem como pálpebras, ora revelando ora escondendo o interminável brilho dos olhos magnéticos, verdes, cinzentos, azuis e desmesurados como mares.(...)"
Sophia de Mello Breyner Andresen. A Casa do Mar in Histórias da Terra e do Mar.
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