O largo Barão de Quintela, ou melhor o projecto que a Câmara de Lisboa pretende aí construir, está no centro de uma polémica que ameaça provocar uma primeira baixa no Comissariado da Baixa-Chiado. Esta questão foi suscitada por um artigo de opinião de Raquel Henriques da Silva, integrante daquele Comissariado nomeado para assesorar Maria José Nogueira Pinto, publicado no Público de 14 de Maio passado. Nesse artigo intitulado "A destruição anunciada do largo Barão de Quintela" a comissária insurge-se contra a intenção da autarquia de construir o projecto de Gonçalo Byrne e ameaça, caso essa intenção se concretize, abandonar o Comissariado da Baixa - Chiado.
A construção do Parque subterrâneo de Byrne - um arquitecto credível segundo a singular(*) opinião do IPPAR - implica uma relocalização da estátua de Eça de Queiroz e a destruição do pequeno jardim. A historiadora escreveu: "(...) O largo tornar-se-ia um dos pontos referenciais da Lisboa oitocentista, quando o Chiado era o coração habitado e activo de Lisboa. O gosto romântico, que anunciara com antecipação, adquiriu discreta dimensão aurática quando, em 1903, ali foi colocada uma das mais belas esculturas públicas da época, da autortia de António Teixeira Lopes, homenageando Eça de Queiroz, logo após a sua morte em 1900. Enquadrando o monumento, foi criado um pequeno jardim pitoresco, alargando, ao espaço do largo, a figura redonda do escritor e da sua nua "Verdade". Este jogo subtil entre escalas e figuras geométricas levemente encaixadas ( o largo é o círculo da estátua dentro do círculo, mais difuso, do jardim, dentro da quadra da arquitectura, impositiva mas aberta no declive das ruas do Alecrim e das Flores) é a marca intangível de um urbanismo de qualidade capaz de absorver episódios sucessivos conm extraordinária adaptabilidade.(...)"
Relativamente ao novo projecto a comissária é implacável: "O parque que agora se anuncia é um torpe e inútil crime. Para instalar 270 lugares de estacionamento (em cinco níveis de esventramento impiedoso do miolo instável de Lisboa) vai-se partir a Rua das Flores com mais entradas de túneis; alterar a disposição do largo que, em vez de olhar um palácio monumento nacional, passará a orientar-se para o edifício dos bombeiros; deslocar o monumento a Eça de Queiroz, tornando-o um bibelot rídiculo, sem escala nem arrimo; destruir uma singela mancha de jardim, substituindo-a pela limpeza arrogante do paisagismo contemporâneo.
Lisboa ficará imediatamente mais pobre (com a pobreza confrangedora do novo riquismo) e a circulação na Rua do Alecrim ( que costumo designar por uma das mais belas ruas da cidade) tornar-se-á mais confusa e mais lenta ( basta lembrar as filas noturnas para acesso ao estacionamento do Largo Camões)(...)"
Esta questão liga-se com o famigerado Comissariado da Baixa -Chiado que a vereadora do PP escolheu para elaborar um relatório sobre o que fazer para reabilitar esta zona da cidade até 2010. Esta moda dos comissariados tem muito que se lhe diga. Mas o que me interessa abordar aqui é a revelação feita pelo Expresso, na edicção de 6 de Maio, das declarações de Augusto Mateus, conhecido economista que integra o Comissariado. Disse o senhor que "O objectivo é criar condições de excelência na Baixa para atrair as pessoas certas e as empresas certas.(...) A nova baixa é para quem tenha poder de compra." Esta declaração chocante não mereceu qualquer comentário, ou qualquer reacção de choque, tão entranhados estão os valores ultra-liberais nas nossas elites que perceberam agora que a cidade pode ser o grande negócio desde que a sua gestão se faça partindo do pressuposto de que a cidade é apenas um produto e os cidadãos nada mais do que consumidores. Claro que segundo a insuperável lógica de Mateus cidadãos, cidadãos são aqueles que têm poder de compra. Os outros, simples humanos, serão varridos para os subúrbios.
Eis aqui, no programa que resulta das infelizes mas certamente sinceras declarações de Augusto Mateus, uma segunda boa razão para que Raquel Henriques da Silva abandone o Comissariado da Baixa-Chiado. A menos que o largo Barão de Quintela, cuja defesa merece o meu aplauso, seja para ela mais importante do que o destino dos lisboetas que gostariam de ter acesso a viver numa Baixa-Chiado reabilitada, interclassista, democrática. Lisboetas que gostariam de poder viver na sua cidade. Que gostariam que esse seu desejo fosse uma possibilidade e um direito de todos e não apenas uma consequência das regras impostas pelo negócio imobiliário que se torna neste discurso pseudo-globalizado o negócio da cidade.

(*) - singular porque, segundo revelação da historiadora, o IPPAR após ter chumbado um primeiro projecto recomendou que talvez fosse conveniente entregar o projecto a um arquitecto credível. Conclui-se que esses arquitectos credíveis são aqueles relativamente aos quais o IPPAR só emite um único parecer: Concorda-se!!!.

PS -Não se consegue aceder ao projecto objecto desta discórdia. A informação urbanística da Câmara deLisboa deixa muito a desejar. Como, aliás, o urbanismo(?) que promove.


 

Pedra do Homem, 2007



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