Li, há uns tempos, um artigo de uma escritora britânica, do qual retive esta ideia: devemos escrever sobre realidades que conhecemos, em vez de tentar chegar a universos que nos pareçam exóticos, distantes, em suma, que simplesmente não. A autora dirigia-se aos que querem escrever. Assim, e levando muito à letra essa ideia, decido caracterizar o espaço que me rodeia, ou melhor, que tenho conhecido nos últimos meses.
O meu bairro.
Em primeiro lugar, porque é icónico. Está para os que descrevem os bairros como a Coca Cola está para as bebidas pop. Tal não costuma, no entanto, ser uma vantagem. Os ícones, principalmente a parada postaleira da Europa que constitue as imagens mentais do continente, costumam provocar, nas mentes curiosas, uma espécie de enfarte emocional. Seria o caso da Torre Eiffel e da sua prima de Pisa, do Coliseu, do relógio dos outros, dos canais e dos moinhos e, porque não, das montanhas da Heidi. Junte-se-lhe um toiro e está completa a receita. Ainda assim, certas experiências icónicas merecem ser vividas, mais que não seja por satisfazerem as expectativas da nossa herança cultural. Podem ainda revelar-se como agradáveis surpresas.
Uma das surpresas que vivi foi conhecer o Boulevard de Saint Germain, em Paris. Assediado de perto pela Nôtre Dame, povoado por todo o tipo de montras inacessíveis e próximo das Universidades de Paris ( pronto, Sorbonne, já disse), constitui uma das principais artérias da cidade. A avenida é, como todo o espaço para quem o habita, uma fonte de memória e de experiência. Passar por ali é ver gente, passar por essa gente é assumir uma condição de grupo itinerante, ainda que inconscientemente, com todos eles. O que mais gosto é a capacidade que temos, entre todos, de nos admirar sem deixar de nos ignorar. Entre peles ( que, espero, sejam falsas), tecidos de todas as cores, casacos estilo “eu até sou elegante mas não me importa nada”, cabelos cobertos, penteados, brilhantes, compridos, falsos, nobres, conservadores, anti-CPE ou ausentes... Formamos uma amálgama de expectativas que anseiam pela chegada ao destino. Muito interessante nesses serpenteares entre humanos é tentarmos coordenar as nossas rotas para chegar ao cinema, ao escritório, à faculdade e, porque não, ao Café de Flore?
O Boulevard é também a morada de alguns cinemas. Os Odéon, apesar de já amputados pelo glamour dos tempos de Mastroiani, recebem sem espaço as vozes multiligues dos que se aproximam para ver as versões originais. Tudo flui. Mais à frente, no sentido de quem vem da praça de Cluny, encontra-se a igreja mais antiga de Paris, a de Saint-Germain-des-Près. Parece feita de uma areia densa e as tardes solarengas de Primavera ( se bem que interrompidas, de vez em quando, por chuveiros ) oferecem-nos uma tonalidade terra carregada de luz, que interrompe esse azul muito celeste que nos observa. Muitas noites, ao passar pela Praça de Beauvoir, onde se encontra a Igreja, oiço a voz de uma senhora pintalgada que arranha as canções mais icónicas da voz francesa. Qual Piaff renascida, acompanha o vendedor de crepes com chocolate, açucar ou compota. Eles não sabem, mas juntos, fazem parte desse quadro mental desta zona do Boulevard.
Ainda que situado na zona nobre, cosmopolita e badalada, numa palavra, a zona cara de Paris, o Boulevar Saint Germain é um palco social total. Pela diversidade dos individuos que por ali passam. Pela portas que se abrem todos os dias. Pelas pessoas que entram por essas portas. Pelas que saem. Uns limpam, outros gastam, outros vieram só deixar um papel. Para todos eles e para mim, o Boulevard faz parte dessa realidade. É, sem duvida, o nosso palco.
António Oliveira e Silva
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