Correu por estas páginas, quase exclusivamente por mérito das intervenções do comandante Ferreira da Silva, uma discussão à volta das relações entre os Portos e as Cidades.
Cabe-me agora a vez de dar a minha contribuição, já um pouco atrasado é certo, para um debate que me interessa particularmente, embora por razões distintas daquelas que motivaram os meus ilustres antecessores.
Do meu ponto de vista esta questão das relações entre as cidades e os portos inscreve-se no capítulo mais vasto da discussão sobre as formas de desenvolvimento urbano. Para esse desenvolvimento contribuem um número significativo de variáveis políticas, em particular a forma como a Administração Pública se relaciona com os terrenos urbanos devolutos (aqueles cuja vocação inicial se extinguiu). Estes terrenos representam, do meu ponto de vista, uma oportunidade única (ler aqui) para as Cidades e um poderoso instrumento que podemos, ou não, colocar ao serviço de uma verdadeira Política das Cidades.
Por esse mundo fora a reciclagem urbana - expressão adoptada para descrever o processo de reutilização urbana de terrenos devolutos - é encarada como um instrumento poderoso ao serviço das diferentes políticas urbanas. Este aspecto pode ser decisivo sobretudo num país em que o desenvolvimento urbano é determinado não pelas necessidades dos diferentes grupos sociais mas pelos interesses dos principais promotores que intervêm na cidade. Países em que, por detrás da retórica e da aparente ditadura legislativa e do suposto peso insuportável do Estado, são os privados que controlam latus sensus o processo de desenvolvimento urbano. Um país como o nosso, diga-se.
Para recorrer ao jargão do mercado, um país em que os interesses da
oferta são dominantes e em que os interesses da procura são desprezados, quando não se adequam aos interesses daquela. Oferta e procura de espaços edificados, e espaços complementares dos edificados, para a habitação, o lazer, o comércio e a industria, entenda-se. Isto apesar do imperativo constitucional todos os dias desprezado.
Para que as Administrações Públicas possam voltar a ter uma palavra a dizer no processo de desenvolvimento urbano, quebrando a hegemonia de que os promotores dispõem, sobretudo nos casos em que a legislação urbanística não consagra mecanismos de socialização das mais-valias urbanísticas ou da sua eficaz tributação, é muito importante – embora não seja a única forma disponível - a forma como essa mesma Administração se relaciona com os espaços urbanos devolutos.
Os terrenos recicláveis são entre outros os usados por instalações militares, entretanto tornadas obsoletas quer pelas alterações sofridas pela instituição militar quer pela sua localização, engolida e tornada ineficaz pelo crescimento urbano, por zonas industriais abandonadas, por instituições ligadas à saúde, com áreas anexas muito elevadas e que se tornaram inadequadas ao seu fim e com custos de manutenção insuportáveis ou, o que interessa mais para aqui, por extensas áreas portuárias que não são já hoje necessárias ao desenvolvimento dessa actividade ou que, pela sua localização, se entenda serem melhor utilizadas para outras funções urbanas existindo alternativas de localização equivalentes para as actividades portuárias.
As áreas portuárias interessam-me do ponto de vista do desenvolvimento urbano e do interesse da cidade, não me parecendo que a questão se possa reduzir a uma lógica da cidade a comer o porto ou, ao contrário, do porto a comer a cidade, muito menos que essa lógica tinha uma expressão geográfica que permita adaptá-la a uma divisão entre o Norte e o Sul.
Deve existir uma articulação entre os interesses da cidade e do porto sendo certo que em termos ideais eles devem ser, se não coincidentes, pelo menos complementares.
Mas esta discussão poderia levar-nos, num dos seus múltiplos capítulos, à velha questão dos portos poderem ou não ser geridos pelas autarquias ou pelas administrações regionais – que não existem, em Portugal. Convenhamos que no caso das nossas autarquias, com a pessoalização do poder, a hipersensibilidade para com os interesses do imobiliário, a prevalência de uma lógica de gestão casuística em detrimento de uma lógica de planeamento e com o caciquismo a prevalecer sobre a alternância democrática, é um cenário, que admito, potencialmente assustador. A menos que entendamos como um objectivo estimável assistirmos à futura urbanização das vastas àreas portuárias.
Existem diferentes modos de conceber a reconversão de áreas urbanas situadas em frentes de água. Os diferentes autores(1) que se debruçaram sobre esta questão estudaram não só os diferentes objectivos e estratégias que estão na base da implementação destas reconversões como tentaram sistematizar os diferentes modelos de intervenção.
É consensual a identificação de três modelos e o aparecimento mais recente de um quarto muito ligado ao conceito de cidade ocasional e aos grandes eventos a ela associadas.
Um primeiro modelo, ou modelo americano, que historicamente é referido como aquele que desencadeou o processo de reconversão em frentes de água esteve desde sempre vocacionado para o turismo, lazer e recreação. São citadas, entre outros, os casos de Bóston, Baltimore, Chicago, Toronto e Montreal.
O segundo modelo, que corresponde á difusão do modelo americano pela Europa, aposta sobretudo no “terciário de negócios” adquirindo particular importância as estratégias adoptadas para a captação do investimento privado. A desregulamentação e a flexibilização da regulamentação e da gestão urbanística são os instrumentos a que a Administração recorre para que possa seduzir o investimento privado. Marselha, Londres, Sydney, Tóquio, Melbourne são exemplos apontados entre outros. (será que isto lhe lembra qualquer coisa?)
No caso do terceiro modelo definem-se estratégias globais de regeneração e reestruturação urbanas sempre com o objectivo primeiro de promover a coesão social, combater a segregação espacial dos mais desfavorecidos, reequilibrar as funções urbanas e promover a requalificação dos quarteirões periféricos e a revitalização das zonas centrais, em geral envelhecidas e desertificadas. Interessam aqui muito mais os actores e as parcerias, quer entre os diversos níveis da Administração e entre estes e os privados, do que a atracção do investimento privado a qualquer preço. Este terceiro modelo é aquele em que a intervenção se faz ao serviço de uma verdadeira Política das Cidades. Amesterdão, Newcastle, Barcelona, antes dos jogos Olímpicos, e Roterdão são os casos mais estudados e mais referidos.
O quarto modelo aparece associado à realização de grandes eventos, como no caso dos Jogos Olímpicos de Barcelona(92), da Expo em Lisboa(98) ou de Vancouver em 1986. Nestes casos a intervenção insere-se numa estratégia de reforço da competitividade de uma dada cidade no contexto internacional. Como se verificou em Lisboa, com a falcatrua do investimento público zero, e em Barcelona, com a degradação do afamado modelo de Barcelona e a subida exponencial dos preços da habitação, esta cidade ocasional não é estranha aos interesses dos grandes promotores imobiliários e sobretudo contribui para acentuar a segregação espacial das populações de acordo com o seu poder económico.
No caso de Lisboa é para mim evidente que o porto e a cidade não têm sabido coexistir de forma harmoniosa. A gestão pelo porto de vastas áreas urbanas e sobretudo de quase toda a frente rio não tem sido positiva para a Cidade e tem contribuído para acentuar um aparente divórcio entre os cidadãos e o rio.
Há em primeiro lugar que referir uma questão de principio: no território urbano a única autoridade é, e deve ser, a autoridade municipal.
Todas as áreas urbanas devolutas pertença da Administração Pública devem vir á posse do poder municipal e devem ser utilizadas ao serviço da sua política urbana. Isto é válido tanto para as áreas portuárias como para as áreas militares ou outras. Utilizar estes terrenos e o seu potencial construtivo para através da sua venda ajudar a combater o défice é um péssimo serviço ao país e ao futuro. Tem sido aquilo que tem sido feito quer pelo PSD/PP quer pelo PS. Talvez em nenhuma matéria como esta o Bloco Central corresponda a uma tão rigorosa identidade de objectivos e de políticas.
Vale isto por dizer que as tensões que se instalam entre o Governo, a APL e a autarquia da capital, passam pela disputa deste território mas, infelizmente, ao redor de um consenso nefasto sobre a forma de intervenção. A cidade beneficiará da recuperação de áreas outrora abandonadas e os privados que concretizam a ocupação dos espaços outrora devolutos, libertando algum espaço público(???) residual, beneficiam da acumulação das mais-valias urbanísticas colossais geradas por este tipo de operações. Quem detiver o poder para a reconversão ficará com o capital político associado ao dinamismo que este tipo de intervenção pressupõe. Os privados ficarão com o fillet mignon da operação : as mais-valias simples. A cidade que resulta será mais elitista, mais segregada, mais organizada segundo meros critérios de capacidade sócio-económica dos seus cidadãos. Uma cidade menos solidária, menos inclusiva, menos competitiva, para recorrer ao jargão dos novos pato-bravos do urbanês que vai liquidando as nossas cidades e o futuro dos seus cidadãos.
(1) – Ler a este propósito o texto do Eng.º Civil, Miguel Branco Teixeira, “Reconversão de Áreas Urbanas em Frentes de Água” – publicado no livro “ A cidade da Expo 98” de Vítor Matias Ferreira e Francesco Indovina – baseado na sua tese de mestrado em “Planeamento Regional e Projecto e Ambiente Urbano” com o título “Reconversão de áreas urbanas obsoletas localizadas em frentes de água”.
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