O texto que se publica a seguir, com o título deste post, foi enviado para publicação no jornal Público no passado dia 13-01-2008. Como o texto não foi publicado, reproduzo-o aqui. Acrescento as partes que tinha suprimido por questões de dimensão devidamente assinaladas a azul e em itálico. Não são feitas referências aos textos que surgiram em data posterior a 13-01-2008 que serão analisados e comentados proximamente.
REFORMAR O PODER LOCAL: TARDE E MAL
A discussão sobre o pacote reformador do sistema de governo municipal, acordado entre o PS e PSD, decorre com alguma polémica embora não se conheça ainda o acordo na sua totalidade. Não sou capaz de confirmar se a maioria dos autarcas desejam e se revêem nesta reforma ou em qualquer reforma. Julgo, no entanto, ser razoável admitir que na sociedade portuguesa existe a ideia que é necessário fazer qualquer coisa pelo poder local antes que ele faça qualquer coisa de mais desagradável. por todos nós. É normal que caíamos na tentação de validarmos de forma mais ou menos acrítica o tempo das decisões políticas como um tempo sempre adequado. Seja qual for o tempo que medeia entre a necessidade e a solução há sempre quem ache que estamos perante o exacto momento para “ dar a respostas adequadas aos novos desafios que se colocam ao nosso futuro”, mais coisa, menos coisa.
Começo, por isso, por referir que a reforma que este acordo PS/PSD permitirá é uma reforma tardia. O poder local é, desde o final dos anos oitenta, uma homenagem viva à incapacidade política para reformar o sistema político e para melhorar a qualidade da democracia. Desde 1993 que os dois maiores partidos - o primeiro terá sido o PS em 1993, numa campanha autárquica liderada por José Sócrates - apresentam projectos de reforma do poder local sem que tenha sido possível chegar a qualquer acordo. Talvez por isso gostasse de poder afirmar que mais vale tarde do que nunca e saudar o acordo, mas infelizmente existem razões de sobra para não festejar... a ocorrência. O elemento diferenciador da arquitectura política do poder local democrático foi a criação das Assembleias Municipais e a separação entre o órgão deliberativo e o órgão executivo. Aquilo que caracterizou a evolução do poder local, sobretudo a partir de metade da década de oitenta, foi o reforço do carácter pessoal desse mesmo poder e a desvalorização das funções deliberativas e de controlo democrático da função executiva. As principais contribuições para esta evolução, que se inscreve na prática política de todos os partidos com efectivo poder autárquico, foram a introdução do órgão Presidente da Câmara, na legislação de 1984, com o seu cotejo de competências próprias, e a manutenção até aos nossos dias do duplo parlamentarismo, com a existência de vereadores da oposição nos executivos, enquanto mecanismo instrumental da vontade política de desvalorizar o papel das Assembleias Municipais. A falência política destas seria atenuada pelo suposto controlo efectuado por aqueles. Não quero ignorar a contribuição para a actual situação que representou a manutenção da governamentalização da tutela administrativa e o adiamento ad eternum da limitação de mandatos. Foi este caldo de cultura que permitiu que, de emblema da democracia portuguesa, o poder local se tenha tornado num dos seus maiores problemas, na feliz expressão de Barros Moura em 2001. Uma arquitectura política que não garante o controlo democrático do exercício do poder executivo, a observância do princípio da renovação dos cargos políticos, a alternância democrática e o efectivo controlo e combate à corrupção necessita de uma séria reforma. Estranhamente, a esta realidade, o acordo PS/PSD nada diz, optando os dois partidos por eleger a "governabilidade" como o seu leit-motiv. A reforma justifica-se assim com uma falácia política, a necessidade de reforçar as condições de governabilidade das autarquias, e faz o pequeno milagre de congregar o pior dos dois projectos que estavam à discussão.
Ribau Esteves, o autarca de Ílhavo, agora secretário-geral do PSD, avançava recentemente (debate na Antena Aberta sobre esta reforma) com o número esmagador de autarquias nas quais este problema da governabilidade se colocaria: onze por cento!!! O raciocínio parecia ser o de que em todas as autarquias em que não existe uma maioria absoluta existe, por definição, um problema de governabilidade. Não é assim como os próprios dados do autarca social-democrata mostram de forma exuberante. Com 11% estamos no puro domínio da excepção e não da regra.
O acordo consagra a eleição do executivo camarário a partir da Assembleia Municipal - um princípio justo - mas foi incapaz de se decidir de forma clara entre os executivos monocolores e os de representação plural como os actuais. A opção é de meias tintas: por um lado cria um mecanismo que permite gerar maiorias absolutas automáticas e pelo outro permite que os restantes partidos ou listas concorrentes dividam entre si os lugares sobrantes. Trata-se de introduzir um mecanismo de correcção da vontade livremente expressa eleitores. A única lógica para acabar com as eleições directas para a Câmara é acabar com o duplo parlamentarismo, devolvendo essa função por inteiro ao órgão próprio. César Oliveira, em 1996, na obra que coordenou “História dos Muncípios e do Poder Local”, propunha o fim do duplo parlamentarismo como um dos elementos centrais de uma necessária reforma do poder local.
Claro que isso obriga à redefinição do quadro de relações políticas entre a Assembleia e a Câmara. Mas também às que existem entre as Assembleia e as Freguesias retirando-as da participação mas Assembleias como eu defendo e não somente restringindo o seu direito de voto em algumas votações. A participação das freguesias nas Assembleias Municipais tornou-se um instrumento de deturpação da vontade popular livremente expressa e funciona em regra a favor dos poderes presidenciais já que são conhecidas as dependências financeiras que se estabelecem entre os presidentes das juntas e os presidentes das câmaras. Uma reforma que obriga a que as Assembleias Municipais tenham o poder e os meios para controlar, de forma democrática, o exercício do poder e o rumo da governação. Controlar recorrendo aos mecanismos de censura e de destituição e em último caso obrigando à realização de eleições antecipadas mas controlar através do acompanhamento da acção executiva o que é impossível mais do que no actual quadro de competências com o actual quadro de recursos. A introdução de uma moção de censura votada por um mínimo de 60% - outra vez o espantalho da governabilidade - dos deputados municipais é a confissão de que a componente "reforço das competência" das "Assembleias Municipais" está no acordo apenas como uma manobra de diversão. Imagine-se o Governo da República a ser demitido apenas por 60% dos deputados. Onde é que estaríamos neste momento? Será admissível a manutenção de um qualquer governo com uma maioria absoluta de deputados contra?
As AM necessitam de outro quadro político de funcionamento e de actuação. Necessitam de se libertar do ciclo do amadorismo e da impotência. Necessitam de assumir a sua função trazendo a discussão política para o coração do poder local democrático. Contratualização e negociação política são aliás dois termos que estão erradicados da linguagem em uso na generalidade das autarquias. Os homens bons da cidade não gostam de falar de política, não têm tempo para a discussão política mas, curiosamente, são bastante fluentes quando a conversa incide sobre os interesses imobiliários e o financiamento partidário. Só por cegueira ou estupidez é que se pode excluir algum partido desta responsabilidade. As mudanças implicam, como é natural, custos, mas a democracia tem que se pagar sob pena de ser um sistema insuportavelmente caro para todos. E gasta-se tanto, e tão mal gasto, a perpetuar o poder de alguns que garantir condições materiais mínimas de funcionalidade às AM´s é apenas gastar bem aquilo que agora se delapida impunemente em almoços, jantares e propaganda. Curiosamente, os pequenos partidos, que seriam os mais beneficiados em temos políticos com a valorização do papel das Assembleias, são os mais acérrimos defensores do actual status quo, a que parecem reconhecer enormes virtualidades democráticas. Virtualidades que não praticam nas autarquias em que detêm o poder. A forma como são tratados os vereadores ditos da oposição, a sua falta de direitos e de condições mínimas de funcionamento, a falta de dignidade institucional - que pude testemunhar durante oito anos como vereador - são, além de um modus operandi generalizado, uma nódoa negra da democracia portuguesa e uma acusação contra este poder local, cada vez menos democrático.
Os vereadores da oposição defrontam-se com as mesmas dificuldades dos deputados municipais porque não são profissionais e porque não existe a cultura da transparência e do respeito pela oposição. Acresce o facto – que comprovei durante oito anos, repito – de uma preparação mínima par uma reunião de câmara em que vão ser analisados, discutidos e votados projectos de loteamento, vendas de património, propostas de planos de urbanização e outras matérias obrigam a uma preparação prévia que implicaria o recurso a um tempo de que os não profissionais não dispõem. Isto no caso da informação estar disponível o que quase nunca acontece.
No meu primeiro mandato -193-1997 - como vereador(*) tive que apresentar queixa ao IGAT para poder ter acesso com antecedência de 24 horas, pasme-se, às Ordens de Trabalho das reuniões. Por essa experiência pessoal mas não só sei que a presença dos vereadores da oposição nos executivos não garante coisa nenhuma ao contrário do que afirmava Vital Moreira - Público de 5-12-2007 – quando detectava o reforço de uma tendência para a bipolarização política na reforma mas admitia que “a manutenção de vereadores dos partidos minoritários possa atenuar essa tendência”. Alguém sabe o que são reuniões de coordenação? Estão em uso na generalidade das autarquias e são feitas entre os eleitos do partido maioritário. É lá que são tomadas as decisões relevantes e é lá que se decide o que vai às reuniões da Câmara e de que forma.
Só um sistema cobarde pede a alguns que se sacrifiquem – ser vereador da oposição de forma crítica, tem um pesado custo pessoal e profissional sobretudo em autarquias em que a actividade política não é mediatizada, como acontece em mais de 90% dos casos - para dar uns vagos ares democráticos a um modelo que não é capaz de se credibilizar por si mesmo através de mecanismos eficazes de contratualização e negociação política, de regulação e de controlo democrático do exercício do poder.
Será que queremos alterar este sistema caduco ou apenas reforçá-lo ?
(*) - Fui vereador na Câmara de Sines nos mandatos 1993-1997 e 1997-2001, tendo liderado, como é público, as candidaturas do PS, como independente . Nunca tive pelouros atribuídos. Ainda recentemente o Tribunal de Contas me condenou a pagar multas por actos de gestão contra os quais votei com declaração de voto expressa, inclusivé. Multas pesadas se admitirmos que o meu maior "salário" na autarquia ao longo de 8 anos nunca chegou aos 150 Euros, que equivalia ao valor das senhas de presença forma de remuneração dos vereadores da oposição sem pelouros atribuídos. Há quem goste deste sistema e lhe reconheça virtualidades democráticas. A imaginação do "povo" é infinita.
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