A rua, ou melhor a manifestação que no passado dia 8 de Março encheu com cerca de 100 mil manifestantes as ruas de Lisboa, continua a fazer estragos. Agora é o historiador Rui Ramos, Público de hoje, que alerta para o facto de a rua não "ser um sítio para ter razão. Na rua não valem os argumentos, valem os números, vale a presença física." Rui Ramos acrescenta depois que " a rua, hoje, é um espectáculo tão fabricado como qualquer outra cerimónia do Estado. Não é a realidade. A realidade é a vida de um país, que se não cabe numa assembleia, ainda menos cabe numa rua." Não se compreende porque razão sentiu Rui Ramos necessidade de quantificar o número de manifestantes numa perspectiva minimalista (70.000) aquém dos valores avançados pela polícia (80.000) ou pelos sindicatos (100.000). Talvez porque a rua lhe pareça tanto mais irreal quanto maior for o número daqueles que a ela recorrem como lugar por excelência para se manifestarem. Reconheça-se no entanto que Rui Ramos tenta recorrer, por momentos, ao discurso dos que defendem a importância da rua e do espaço público nas sociedades democráticas, para melhor questionar a sua utilização. Por exemplo quando afirma que :"A rua das manifestações é um espaço privatizado ocupado e delimitado pelos "organizadores", onde não se ouvem outras vozes - é a negação do espaço público democrático, que é por definição aberto e plural(...)"
Contrariamente ao que Rui Ramos escreve o espaço público democrático, a rua na feliz expressão de Pavese "atravessar a rua para saír de casa", é tanto mais aberto e plural quanto consiga ser o lugar no qual se evidenciam, e no qual se resolvem, todos os problemas de injustiça social, económica e política existentes na sociedade democrática. Que sentido faz pretender recusar ao espaço público essa sua dimensão de lugar de relação e de expressão comunitária, de lugar da intimidade e da participação política, de lugar da revolta e do autogoverno, da inovação e da troca?
Lisboa, como aqui escrevi, cumpriu no dia 8 de Março o seu papel de cidade democrática, oferecendo as suas ruas para a livre expressão das liberdades individuais e colectivas. Uma das cidades mais guetizadas da Europa, uma das cidades com mais centros comerciais da Europa, esqueceu por alguns dias o discurso político dominante que transforma os cidadãos em consumidores e a vida urbana num mero produto imobiliário e fez tabua rasa da ideia nefasta da perigosidade do espaço público. É essa ideia que Rui Ramos vem agora pretender recuperar com falinhas mansas.


 

Pedra do Homem, 2007



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