"A questão da corrupção levanta dois problemas: um de educação ou de cultura e outro relativo ao sistema de justiça.
O primeiro passa por uma atitude de complacência com o «jeitinho». Pede-se um jeitinho, mesmo que se tenha toda a legitimidade para exigir o reconhecimento dum direito. Pedindo um jeitinho, é normal que quem faz o jeito fique credor do outro, assim avolumando a bola de neve… Isto é tanto mais grave quando o «jeitinho» socialmente aceitável pode ser um emprego tendencialmente para toda a vida, coisa pouca: para um quadro médio, cerca de um milhão e duzentos mil euros, em suaves prestações mensais ao longo de 40 anos, acrescido de pensão de reforma! Ou pode ser um licenciamento, legal ou ilegal, mas sem entraves porque o licenciador está a fazer um «jeitinho»… Tudo isto, se vendido a crédito, isto é, sem um pagamento imediato e à vista, é socialmente aceite… esquecendo que o emprego do filho do Zé significa que alguém com mais qualificações ficou no desemprego…
Isto vale bem uma campanha mediática, pondo em contraste o exercício de direitos com o pedido de «jeitinhos»…

Ao nível da justiça, o principal problema decorre ainda da questão cultural: não há quem queira denunciar os casos que conhece porque deixa de beneficiar dos «jeitinhos» ou, se já se assume cidadão sujeito de direitos teme ser acusado de denúncia caluniosa, se não vier a fazer prova do que afirma…
Depois, ninguém estranha que alguém que ganha 2 ou 3.000,00 euros mude de carro, topo de gama, todos os anos, tenha um palácio no Algarve e outro na terra… “É esperto!!!”
Por isso, independentemente do modo como se redija a norma incriminatória do enriquecimento ilícito – e é possível fazê-lo sem violação do princípio da presunção de inocência – o povo e os operadores judiciários continuarão a olhar benevolamente para o tipo do Ferrari como um tipo “Esperto!!!”, que não merece punição, que deve ser acolhido nas recepções do poder, nas comissões de honra das candidaturas…

Há poucas condenações, é verdade! Há poucos processos, comparando com o que se pressente, é verdade! Mas, ressalvando o enriquecimento ilícito, já temos leis a mais, criando demasiados interstícios para fugir… Mais vale um único crime, com versões agravadas ou atenuadas mas aplicável a todas as situações, do que muitos tipos que, logo à partida criam o problema do enquadramento num ou noutro: é corrupção ou tráfico de influências? É activo ou passivo? E por aí adiante…"


Leitor devidamente identificado


 

Pedra do Homem, 2007



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