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JCG
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10/06/2013 05:22:00 da tarde
Texto enviado em Outubro e Novembro para os jornais Expresso e Público e não publicado.
AUMENTO DO IMI – MAIS RECEITA
MENOS EQUIDADE
A
troika, entre as várias medidas de política fiscal que impôs aos governos
pós-assinatura do memorandum de entendimento, consagrou o aumento do Imposto
Municipal sobre Imóveis (IMI) para os anos de 2013 e 2014. Um acréscimo de 400
milhões na receita de IMI durante a vigência do acordo – 250 milhões em 2013 e
150 milhões em 2014 - não para reforçar as receitas autárquicas mas para serem
exclusivamente canalizados para o esforço de consolidação orçamental imposto ao
país. Tendo em conta a receita de 2011, ligeiramente superior a mil milhões de
euros, estamos a falar de um aumento pontual de 25% em 2013 e de 15% em 2014. O
Governo para satisfazer este compromisso tratou de desencadear um rápido
processo de avaliação que está a conduzir a um acréscimo significativo do valor
patrimonial tributário dos prédios e ao aumento do valor a pagar por cada
proprietário. Ciente do acréscimo desse valor, estabeleceu, numa primeira fase,
uma cláusula de salvaguarda – que está prevista no arteº 25º do Código do IMI
(CIMI) - que impedia aumentos superiores
a 75€/ano. Mas, como se sabe, o Governo veio recentemente juntar o pior de
todos os mundos que nesta matéria convergem: avaliar rapidamente todos os
prédios, não diminuir as taxas do imposto, antes pelo contrário, e acabar com a
cláusula de salvaguarda que em boa hora adoptara. Recentemente, o recuo em sede
de Orçamento Geral de Estado, com a reposição da cláusula de salvaguarda,
permitiu atenuar, embora apenas para os rendimentos mais baixos (Público de
25.10.2012), o impacto causado pela medida. Propomo-nos comparar a situação
actual com os objectivos da reforma de 2003 e mostrar as consequências do
processo de avaliação em curso, cuja gravidade vai muito para além da existência
ou não da cláusula de salvaguarda. Existem outras abordagens pertinentes para o
tema “IMI” tais como a discussão em torno da legitimidade para invocar o
princípio do benefício por um Estado com a política de habitação de Portugal e
por autarquias que desenvolvem as políticas urbanísticas que todos conhecemos
ou a legitimidade para agravar um imposto cuja arquitectura evidencia opções
dificilmente justificáveis quer juridicamente quer urbanisticamente.
A
alteração da lei de tributação do património concretizada em 2003 pelo Governo
de Durão Barroso visava cumprir o objectivo de tributar menos os prédios novos
e de tributar mais os mais antigos, que no tempo da Contribuição Autárquica
(CA), não pagavam praticamente nada. Escreveu-se no CIMI que se pretendia
corrigir as “distorções e iniquidades,
incompatíveis com um sistema fiscal justo e moderno e, sobretudo, uma situação
de sobretributação dos prédios novos ao lado de uma desajustada subtributação
dos prédios antigos”. O objectivo era, recorde-se, tornar mais justa a
tributação do património imobiliário e não, saliente-se, aumentar a receita
fiscal. Infelizmente a realidade mostra-se muitas vezes implacável com as
nossas melhores expectativas e assim aconteceu com as expectativas liberais de
então. A receita em sede de IMI evoluiu de forma impressionante, situando-se,
consistentemente, acima dos mil milhões de euros quando no último ano em que se
pagou apenas CA (2002) a receita fiscal não ultrapassou os 560 milhões. Em 2008
(Público de 04.07.2008), Vasco Valdez, Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais
em 2003, alertava já para o facto de as receitas de IMI terem crescido cerca de
51%, entre 2003 e 2007.
Falemos
então de números. Desde 2002 e até 2010 os portugueses, detentores de
património imobiliário não sujeito a isenções temporárias ou permanentes
pagaram 7274 milhões de euros de IMI (ver Tab.I) o que corresponde a um valor
médio anual de 909 milhões de euros. O IMI significou uma receita adicional de
2796,60 milhões, por comparação com o ano de referência de 2002, o equivalente
a um acréscimo médio de 350 milhões/ano. Isto corresponde a ter-se aumentado a
receita fiscal em 62,3% na transição entre a CA e o IMI, mantendo-se depois a
receita constante. Um esbulho, para utilizar uma linguagem agora muito em voga.
TAB I – EVOLUÇÃO DA RECEITA DE
IMI – 2003-2010
ANO
|
2002
|
2003
|
2004
|
2005
|
2006
|
2007
|
2008
|
2009
|
2010
|
IMI*
|
560**
|
691
|
776
|
796
|
874
|
977
|
1060
|
1020
|
1080
|
ACUM
|
-
|
691
|
1467
|
2263
|
3137
|
4114
|
5174
|
6194
|
7274
|
*- milhões de euros - ** - receita apenas de Contribuição
Autárquica Fonte: DGCI e ANMP
Esta
análise ficaria incompleta se ignorássemos que a reforma da tributação do
património deixou, inexplicavelmente ou talvez não(1), inalterada a tributação
dos prédios rústicos cujo número é de cerca de 11,6 milhões. No ano de 2010, os
prédios rústicos pagaram em média 0,76 €/prédio contribuindo para a receita com
8,374 milhões de euros o que representa 0,76% do total cobrado. Bastaria um IMI
médio de 33,93 euros por prédio rústico - naturalmente corrigida a tributação
pela dimensão de cada prédio e por outros factores relevantes - para, já em
2013, obter o acréscimo de receita exigido pela troika. Mas, uma cobrança de 50
€ por prédio rústico significaria um acréscimo de receita fiscal de 580 milhões
de euros cerca de metade da actual receita do IMI. Há aqui, claramente, um
potencial de soluções.
Um
Governo liberal, como o de Passos Coelho pretendia ser, que prometia reduzir a carga fiscal geral, poderia e
deveria reconduzir-nos à ideia liberal do Governo de Barroso/Manuela Ferreira
Leite. Optar, agora, por seguir o caminho do regresso às origens, significava
diminuir o esforço fiscal das famílias fortemente endividadas e sujeitas à colossal
austeridade. Como? Acabando com a totalidade das isenções e diminuindo as
taxas, isto é, alargando a base de incidência e diminuindo o esforço pedido a
cada um. É chocante considerar a hipótese de os prédios avaliados serem
sujeitos a uma taxa superior a 0,2% seja qual for o seu valor patrimonial. Da
mesma forma que para os prédios ainda não avaliados a taxa não deveria nunca
ser superior aos 0,4%. Os números da evolução da receita mostram-nos que, sem
novas avaliações e reduzindo as taxas a metade, a receita de IMI seria idêntica
à de CA em 2002. Ora, os prédios avaliados pelo CIMI eram até ao final de 2011
apenas cerca de 30% dos existentes, não ultrapassando os 2,3 milhões num total
de 7,8 milhões. A matéria colectável vai agora aumentar significativamente e a
receita em sede de IMI vai disparar para valores que mais do que duplicarão a
receita actual. Pode-se argumentar com o peso relativo desta receita em
percentagem do PIB no contexto europeu. Mas, não se pode comparar o que é
incomparável já que as isenções temporárias e permanentes e a discriminação dos
prédios urbanos por comparação com os rústicos tornam essa comparação
inadequada. O Governo optou, claramente, por cobrar mais a todos os já sujeitos
a tributação, transformando o IMI numa renda do Estado e num mecanismo de
nacionalização da mais importante propriedade que os portugueses possuem: a sua
casa. Pretenderá assim acautelar as consequências das suas políticas sobre a
economia e confessa-nos, por esta via, que sabe irem as outras receitas fiscais
diminuir nos próximos anos. Mais uma vez não mostra capacidade para introduzir
equidade no esforço pedido, já que deixa de fora os segmentos mais importantes
dos que beneficiam de isenções permanentes e temporárias e recusa rever a
situação dos prédios rústicos.
Existem
por isso alternativas a esta via. O que aconteceria, por exemplo, se as
isenções que o Governo diz querer acabar –as isenções temporárias e permanentes
quer de prédios rústicos quer de prédios urbanos abrangem 2.147.225 prédios - incluíssem
os prédios integrados em fundos de investimento imobiliário, fundos de pensões
e fundos de poupança reforma, para os quais o sistema financeiro canaliza os
seus (in)activos imobiliários? E se os prédios dos vários organismos dos
diferentes níveis da administração perdessem a isenção de que gozam? Ou se os
prédios rústicos contribuíssem, proporcionalmente, para a receita total?
Poderíamos aproximar-nos de um imposto justo, desagravando as famílias e
aumentando, apesar disso, a receita total? Certamente que sim!
Um
outro aspecto que importa referir tem a ver com as vítimas maiores dos aumentos
do IMI. Os portugueses que, para poderem dispor de um alojamento condigno,
tiveram que o adquirir no mercado, consumindo dessa forma uma grande parte do
rendimento disponível das suas famílias. Somos o país em que a percentagem dos
cidadãos que vivem em casa própria – ocupantes/proprietários no jargão
urbanístico – é uma das mais elevadas no contexto europeu e dos países
desenvolvidos em geral. Somos, simultaneamente, um dos países com mais baixo rendimento
per capita. Este milagre apenas foi
possível com o recurso ao financiamento bancário e com a sujeição a um
endividamento para a vida que, em situações de crise como a actual, resulta num
crescimento exponencial dos níveis de incumprimento com a perda das casas e a
destruição da coesão social. A situação que nos conduziu a sermos um país de
proprietários (hipotecados) -seria interessante perceber como muda o tratamento
em termos de IMI dos prédios depois de devolvidos aos bancos por incumprimento
dos proprietários - resultou não de uma
especificidade dos portugueses mas, apenas e só, de uma opção política dos
sucessivos governos, marcada por uma orientação liberal incomum no contexto
europeu. Isto, apesar do texto Constitucional determinar uma orientação
completamente diferente(2), impondo uma política pública de habitação e
elegendo o direito à habitação como um direito fundamental dos cidadãos, no
mesmo plano do direito à saúde e à educação. Portugal é o país da Europa em que
menos cidadãos vivem em casa arrendada, a uma enorme distância de todos os
outros. O País em que a compra da casa custa o maior número de anos de
salário(3), cerca do dobro da média europeia. O lado irónico, senão trágico,
desta situação é que ela começou a desenhar-se aquando da intervenção do FMI em
1983, com a repressão da intervenção do Estado na produção de habitação social
e a repressão do arrendamento cooperativo que era então a forma quase exclusiva
de intervenção das Cooperativas de Habitação. Essa passagem do FMI por Portugal
marca o momento em que o acesso dos cidadãos à habitação deixou de ser uma
responsabilidade do Estado, passando a ser uma questão passível de ser
resolvida pelo mercado(4). Já então se utilizou o álibi da necessidade de
corrigir o défice das contas do Estado. Afinal, a solução então preconizada
continha as raízes dos males de que agora nos queixamos.
Não
pode deixar, por isso, de ser chocante que o IMI invoque o príncipio do
benefício na sua justificação: “Mantêm-se,
no entanto, plenamente actuais as razões que, aquando da reforma de 1988-1989,
levaram à criação de um imposto sobre o valor patrimonial dos imóveis, com a
receita a reverter a favor dos municípios, baseado predominantemente no
princípio do benefício”.
Como
é que um Estado de direito que se demitiu, ao longo de 30 anos, de promover uma
política pública de habitação, forçando os cidadãos a um esforço financeiro
brutal para adquirirem casa própria, violando o que dispõe a Constituição sobre
o esforço exigível às famílias (5), possa invocar o princípio do benefício? Que
serviços prestam as autarquias, não cobertos pela panóplia de taxas existentes,
que lhes permita invocar esse princípio? Como é que um Estado que, no contexto
europeu, tem sido, nas últimas décadas, integrado no grupo dos mais liberais no
domínio das políticas públicas de habitação (6), resolve agravar brutalmente o
imposto sobre esse património, na sua quase totalidade hipotecado aos bancos?
Como é que autarquias que promoveram a má qualidade urbana que todos vemos pelo
país inteiro, com a construção sem rei nem roque, podem ser recompensadas por
isso, com o dinheiro dos cidadãos a quem penalizaram e penalizam? Até por isso,
para evitar a logica do quanto pior melhor, as receitas de IMI deveriam deixar
de ser uma receita autárquica e deveriam ser canalizadas para um fundo soberano
apenas possível de ser mobilizado para projectos de solidariedade e renovação
urbanas que articulassem urbanismo com habitação e emprego ou para correção das
assimetrias regionais.
Como
é que se pode promover um agravamento fiscal em sede de IMI sem rever a fórmula
de cálculo, cuja aplicação conduz a uma clara violação dos princípios da
igualdade e da objectividade. Haverá algo mais subjectivo do que os
coeficientes de localização fixados pelas autarquias? Haverá maior injustiça do
que dois proprietários de dois bens imobiliários da mesma idade, adquiridos
pelo mesmo valor, pagarem IMI´s diferentes? E como se pode manter os
disparatados coeficientes minorativos e majorativos quando, até por se tratar
de uma receita autárquica e por se invocar o principio do benefício, estes
deveriam ser sobretudo a expressão da boa ou má qualidade urbanística? Será
defensável a manutenção da taxa que incide sobre o valor dos prédios - e o
aumento do limite inferior para prédios avaliado - sem ter vontade política
para acabar com as isenções politicamente protegidas mas inexplicáveis do ponto
de vista da justiça fiscal?
O
IMI representava já um dos mais severos aumentos de impostos verificado nos
últimos anos, sendo que os agravamentos brutais agora propostos são a expressão
última de um Governo que resolveu virar as costas ao País e aos seus cidadãos.
Os portugueses não podem pagar este imposto que é um atentado violento contra a
sua propriedade e um contributo brutal para o seu empobrecimento.
Lisboa,
16.10.2012
José
Carlos dos Santos Guinote
Engenheiro
Civil
(1)
– Os
terrenos rústicos sobretudo os que se situam nas áreas periurbanas foram
adquiridos pelo sistema financeiro e esperam, em muitos casos, a geração de
mais-valias urbanísticas que resultarão da reclassificação como urbanos desses
terrenos. Uma tributação desse património viria alterar as “expectativas”.
Interessante nesta perspectiva é a leitura do Comunicado do Conselho de
Ministros de 7 de Fevereiro de 2008. Ponto 5. Proposta de Lei que procedeu à quarta alteração ao Código das
Expropriações.
(2)
- Constituição
da República Portuguesa. Art. 65º - Habitação e urbanismo. Parágrafo 2º que
impõe ao Estado a adopção de uma política de habitação.
(3) - Já
em 1996, no Plano Nacional de Acção–Habitação, era referido o agravamento da
disparidade entre os preços da habitação e os rendimentos das famílias,
afastando Portugal da média europeia, pois enquanto no nosso País a aquisição
de um alojamento correspondia a 7 anos de vencimento médio, este valor era
muito mais baixo nos países da União Europeia onde correspondia, em média, a 3
anos de vencimentos.
Em
2005,de acordo com publicação “Situação
Imobiliária em Portugal” do BBVA, a aquisição de um
alojamento já correspondia a 9 anos de salário médio.
(4)
– A intervenção do FMI em 1983 foi importante para por um ponto final numa
ideia de política pública de habitação. Mas a configuração da actual situação apenas
se começou a desenhar após a adesão ao euro com a forte diminuição das taxas de
juro que ocorreu a partir de 1998
e
o consequente estímulo da compra de habitação própria.
(5) - Constituição da
República Portuguesa. Art. 65º - Habitação e urbanismo. Parágrafo 3º - “O
Estado adoptará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda
compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria”.
(6) - Ver « Le
logement social dans les 27 États membres. Du résiduel à l´universel » de
Laurent Ghekiére. Habitat et societé,
nº46, Junho de 2007, pp. 30-34 e “ les conceptions
européennes du logement social. La diversité des conceptions au sein de l´EU”.
Laurent Ghekiére. Problèmes politiques et sociaux. Nº 944. Politiques de
l´habitat et crises du logement. Janvier 2008. Ver ainda “La Politique du Logement
dans les États membres de L´Union Européenne ». U.E. Direction Générale des Études- Document
de Travail. Série Affaires sociales. ”