Texto enviado em Outubro e Novembro para os jornais Expresso e Público e não publicado.


AUMENTO DO IMI – MAIS RECEITA MENOS EQUIDADE

A troika, entre as várias medidas de política fiscal que impôs aos governos pós-assinatura do memorandum de entendimento, consagrou o aumento do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) para os anos de 2013 e 2014. Um acréscimo de 400 milhões na receita de IMI durante a vigência do acordo – 250 milhões em 2013 e 150 milhões em 2014 - não para reforçar as receitas autárquicas mas para serem exclusivamente canalizados para o esforço de consolidação orçamental imposto ao país. Tendo em conta a receita de 2011, ligeiramente superior a mil milhões de euros, estamos a falar de um aumento pontual de 25% em 2013 e de 15% em 2014. O Governo para satisfazer este compromisso tratou de desencadear um rápido processo de avaliação que está a conduzir a um acréscimo significativo do valor patrimonial tributário dos prédios e ao aumento do valor a pagar por cada proprietário. Ciente do acréscimo desse valor, estabeleceu, numa primeira fase, uma cláusula de salvaguarda – que está prevista no arteº 25º do Código do IMI (CIMI) -  que impedia aumentos superiores a 75€/ano. Mas, como se sabe, o Governo veio recentemente juntar o pior de todos os mundos que nesta matéria convergem: avaliar rapidamente todos os prédios, não diminuir as taxas do imposto, antes pelo contrário, e acabar com a cláusula de salvaguarda que em boa hora adoptara. Recentemente, o recuo em sede de Orçamento Geral de Estado, com a reposição da cláusula de salvaguarda, permitiu atenuar, embora apenas para os rendimentos mais baixos (Público de 25.10.2012), o impacto causado pela medida. Propomo-nos comparar a situação actual com os objectivos da reforma de 2003 e mostrar as consequências do processo de avaliação em curso, cuja gravidade vai muito para além da existência ou não da cláusula de salvaguarda. Existem outras abordagens pertinentes para o tema “IMI” tais como a discussão em torno da legitimidade para invocar o princípio do benefício por um Estado com a política de habitação de Portugal e por autarquias que desenvolvem as políticas urbanísticas que todos conhecemos ou a legitimidade para agravar um imposto cuja arquitectura evidencia opções dificilmente justificáveis quer juridicamente quer urbanisticamente.

A alteração da lei de tributação do património concretizada em 2003 pelo Governo de Durão Barroso visava cumprir o objectivo de tributar menos os prédios novos e de tributar mais os mais antigos, que no tempo da Contribuição Autárquica (CA), não pagavam praticamente nada. Escreveu-se no CIMI que se pretendia corrigir as “distorções e iniquidades, incompatíveis com um sistema fiscal justo e moderno e, sobretudo, uma situação de sobretributação dos prédios novos ao lado de uma desajustada subtributação dos prédios antigos”. O objectivo era, recorde-se, tornar mais justa a tributação do património imobiliário e não, saliente-se, aumentar a receita fiscal. Infelizmente a realidade mostra-se muitas vezes implacável com as nossas melhores expectativas e assim aconteceu com as expectativas liberais de então. A receita em sede de IMI evoluiu de forma impressionante, situando-se, consistentemente, acima dos mil milhões de euros quando no último ano em que se pagou apenas CA (2002) a receita fiscal não ultrapassou os 560 milhões. Em 2008 (Público de 04.07.2008), Vasco Valdez, Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais em 2003, alertava já para o facto de as receitas de IMI terem crescido cerca de 51%, entre 2003 e 2007.

Falemos então de números. Desde 2002 e até 2010 os portugueses, detentores de património imobiliário não sujeito a isenções temporárias ou permanentes pagaram 7274 milhões de euros de IMI (ver Tab.I) o que corresponde a um valor médio anual de 909 milhões de euros. O IMI significou uma receita adicional de 2796,60 milhões, por comparação com o ano de referência de 2002, o equivalente a um acréscimo médio de 350 milhões/ano. Isto corresponde a ter-se aumentado a receita fiscal em 62,3% na transição entre a CA e o IMI, mantendo-se depois a receita constante. Um esbulho, para utilizar uma linguagem agora muito em voga.

TAB I – EVOLUÇÃO DA RECEITA DE IMI – 2003-2010

ANO
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
IMI*
560**
691
776
796
874
977
1060
1020
1080
ACUM
-
691
1467
2263
3137
4114
5174
6194
7274

*- milhões de euros -       ** - receita apenas de Contribuição Autárquica                Fonte: DGCI e ANMP

Esta análise ficaria incompleta se ignorássemos que a reforma da tributação do património deixou, inexplicavelmente ou talvez não(1), inalterada a tributação dos prédios rústicos cujo número é de cerca de 11,6 milhões. No ano de 2010, os prédios rústicos pagaram em média 0,76 €/prédio contribuindo para a receita com 8,374 milhões de euros o que representa 0,76% do total cobrado. Bastaria um IMI médio de 33,93 euros por prédio rústico - naturalmente corrigida a tributação pela dimensão de cada prédio e por outros factores relevantes - para, já em 2013, obter o acréscimo de receita exigido pela troika. Mas, uma cobrança de 50 € por prédio rústico significaria um acréscimo de receita fiscal de 580 milhões de euros cerca de metade da actual receita do IMI. Há aqui, claramente, um potencial de soluções.

Um Governo liberal, como o de Passos Coelho pretendia ser, que prometia  reduzir a carga fiscal geral, poderia e deveria reconduzir-nos à ideia liberal do Governo de Barroso/Manuela Ferreira Leite. Optar, agora, por seguir o caminho do regresso às origens, significava diminuir o esforço fiscal das famílias fortemente endividadas e sujeitas à colossal austeridade. Como? Acabando com a totalidade das isenções e diminuindo as taxas, isto é, alargando a base de incidência e diminuindo o esforço pedido a cada um. É chocante considerar a hipótese de os prédios avaliados serem sujeitos a uma taxa superior a 0,2% seja qual for o seu valor patrimonial. Da mesma forma que para os prédios ainda não avaliados a taxa não deveria nunca ser superior aos 0,4%. Os números da evolução da receita mostram-nos que, sem novas avaliações e reduzindo as taxas a metade, a receita de IMI seria idêntica à de CA em 2002. Ora, os prédios avaliados pelo CIMI eram até ao final de 2011 apenas cerca de 30% dos existentes, não ultrapassando os 2,3 milhões num total de 7,8 milhões. A matéria colectável vai agora aumentar significativamente e a receita em sede de IMI vai disparar para valores que mais do que duplicarão a receita actual. Pode-se argumentar com o peso relativo desta receita em percentagem do PIB no contexto europeu. Mas, não se pode comparar o que é incomparável já que as isenções temporárias e permanentes e a discriminação dos prédios urbanos por comparação com os rústicos tornam essa comparação inadequada. O Governo optou, claramente, por cobrar mais a todos os já sujeitos a tributação, transformando o IMI numa renda do Estado e num mecanismo de nacionalização da mais importante propriedade que os portugueses possuem: a sua casa. Pretenderá assim acautelar as consequências das suas políticas sobre a economia e confessa-nos, por esta via, que sabe irem as outras receitas fiscais diminuir nos próximos anos. Mais uma vez não mostra capacidade para introduzir equidade no esforço pedido, já que deixa de fora os segmentos mais importantes dos que beneficiam de isenções permanentes e temporárias e recusa rever a situação dos prédios rústicos.

Existem por isso alternativas a esta via. O que aconteceria, por exemplo, se as isenções que o Governo diz querer acabar –as isenções temporárias e permanentes quer de prédios rústicos quer de prédios urbanos abrangem 2.147.225 prédios - incluíssem os prédios integrados em fundos de investimento imobiliário, fundos de pensões e fundos de poupança reforma, para os quais o sistema financeiro canaliza os seus (in)activos imobiliários? E se os prédios dos vários organismos dos diferentes níveis da administração perdessem a isenção de que gozam? Ou se os prédios rústicos contribuíssem, proporcionalmente, para a receita total? Poderíamos aproximar-nos de um imposto justo, desagravando as famílias e aumentando, apesar disso, a receita total? Certamente que sim!

Um outro aspecto que importa referir tem a ver com as vítimas maiores dos aumentos do IMI. Os portugueses que, para poderem dispor de um alojamento condigno, tiveram que o adquirir no mercado, consumindo dessa forma uma grande parte do rendimento disponível das suas famílias. Somos o país em que a percentagem dos cidadãos que vivem em casa própria – ocupantes/proprietários no jargão urbanístico – é uma das mais elevadas no contexto europeu e dos países desenvolvidos em geral. Somos, simultaneamente, um dos países com mais baixo rendimento per capita. Este milagre apenas foi possível com o recurso ao financiamento bancário e com a sujeição a um endividamento para a vida que, em situações de crise como a actual, resulta num crescimento exponencial dos níveis de incumprimento com a perda das casas e a destruição da coesão social. A situação que nos conduziu a sermos um país de proprietários (hipotecados) -seria interessante perceber como muda o tratamento em termos de IMI dos prédios depois de devolvidos aos bancos por incumprimento dos  proprietários - resultou não de uma especificidade dos portugueses mas, apenas e só, de uma opção política dos sucessivos governos, marcada por uma orientação liberal incomum no contexto europeu. Isto, apesar do texto Constitucional determinar uma orientação completamente diferente(2), impondo uma política pública de habitação e elegendo o direito à habitação como um direito fundamental dos cidadãos, no mesmo plano do direito à saúde e à educação. Portugal é o país da Europa em que menos cidadãos vivem em casa arrendada, a uma enorme distância de todos os outros. O País em que a compra da casa custa o maior número de anos de salário(3), cerca do dobro da média europeia. O lado irónico, senão trágico, desta situação é que ela começou a desenhar-se aquando da intervenção do FMI em 1983, com a repressão da intervenção do Estado na produção de habitação social e a repressão do arrendamento cooperativo que era então a forma quase exclusiva de intervenção das Cooperativas de Habitação. Essa passagem do FMI por Portugal marca o momento em que o acesso dos cidadãos à habitação deixou de ser uma responsabilidade do Estado, passando a ser uma questão passível de ser resolvida pelo mercado(4). Já então se utilizou o álibi da necessidade de corrigir o défice das contas do Estado. Afinal, a solução então preconizada continha as raízes dos males de que agora nos queixamos.

Não pode deixar, por isso, de ser chocante que o IMI invoque o príncipio do benefício na sua justificação: “Mantêm-se, no entanto, plenamente actuais as razões que, aquando da reforma de 1988-1989, levaram à criação de um imposto sobre o valor patrimonial dos imóveis, com a receita a reverter a favor dos municípios, baseado predominantemente no princípio do benefício”.

Como é que um Estado de direito que se demitiu, ao longo de 30 anos, de promover uma política pública de habitação, forçando os cidadãos a um esforço financeiro brutal para adquirirem casa própria, violando o que dispõe a Constituição sobre o esforço exigível às famílias (5), possa invocar o princípio do benefício? Que serviços prestam as autarquias, não cobertos pela panóplia de taxas existentes, que lhes permita invocar esse princípio? Como é que um Estado que, no contexto europeu, tem sido, nas últimas décadas, integrado no grupo dos mais liberais no domínio das políticas públicas de habitação (6), resolve agravar brutalmente o imposto sobre esse património, na sua quase totalidade hipotecado aos bancos? Como é que autarquias que promoveram a má qualidade urbana que todos vemos pelo país inteiro, com a construção sem rei nem roque, podem ser recompensadas por isso, com o dinheiro dos cidadãos a quem penalizaram e penalizam? Até por isso, para evitar a logica do quanto pior melhor, as receitas de IMI deveriam deixar de ser uma receita autárquica e deveriam ser canalizadas para um fundo soberano apenas possível de ser mobilizado para projectos de solidariedade e renovação urbanas que articulassem urbanismo com habitação e emprego ou para correção das assimetrias regionais.

Como é que se pode promover um agravamento fiscal em sede de IMI sem rever a fórmula de cálculo, cuja aplicação conduz a uma clara violação dos princípios da igualdade e da objectividade. Haverá algo mais subjectivo do que os coeficientes de localização fixados pelas autarquias? Haverá maior injustiça do que dois proprietários de dois bens imobiliários da mesma idade, adquiridos pelo mesmo valor, pagarem IMI´s diferentes? E como se pode manter os disparatados coeficientes minorativos e majorativos quando, até por se tratar de uma receita autárquica e por se invocar o principio do benefício, estes deveriam ser sobretudo a expressão da boa ou má qualidade urbanística? Será defensável a manutenção da taxa que incide sobre o valor dos prédios - e o aumento do limite inferior para prédios avaliado - sem ter vontade política para acabar com as isenções politicamente protegidas mas inexplicáveis do ponto de vista da justiça fiscal?

O IMI representava já um dos mais severos aumentos de impostos verificado nos últimos anos, sendo que os agravamentos brutais agora propostos são a expressão última de um Governo que resolveu virar as costas ao País e aos seus cidadãos. Os portugueses não podem pagar este imposto que é um atentado violento contra a sua propriedade e um contributo brutal para o seu empobrecimento.

 
Lisboa, 16.10.2012

José Carlos dos Santos Guinote

Engenheiro Civil

 

(1) – Os terrenos rústicos sobretudo os que se situam nas áreas periurbanas foram adquiridos pelo sistema financeiro e esperam, em muitos casos, a geração de mais-valias urbanísticas que resultarão da reclassificação como urbanos desses terrenos. Uma tributação desse património viria alterar as “expectativas”. Interessante nesta perspectiva é a leitura do Comunicado do Conselho de Ministros de 7 de Fevereiro de 2008. Ponto 5. Proposta de Lei que procedeu à quarta alteração ao Código das Expropriações.

(2) - Constituição da República Portuguesa. Art. 65º - Habitação e urbanismo. Parágrafo 2º que impõe ao Estado a adopção de uma política de habitação.

 (3)  - Já em 1996, no Plano Nacional de Acção–Habitação, era referido o agravamento da disparidade entre os preços da habitação e os rendimentos das famílias, afastando Portugal da média europeia, pois enquanto no nosso País a aquisição de um alojamento correspondia a 7 anos de vencimento médio, este valor era muito mais baixo nos países da União Europeia onde correspondia, em média, a 3 anos de vencimentos.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                Em 2005,de acordo com publicação “Situação Imobiliária em Portugal” do BBVA, a aquisição de um alojamento já correspondia a 9 anos de salário médio.

(4) – A intervenção do FMI em 1983 foi importante para por um ponto final numa ideia de política pública de habitação. Mas a configuração da actual situação apenas se começou a desenhar após a adesão ao euro com a forte diminuição das taxas de juro que ocorreu a partir de 1998 e o consequente estímulo da compra de habitação própria.

 (5) - Constituição da República Portuguesa. Art. 65º - Habitação e urbanismo. Parágrafo 3º - “O Estado adoptará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria”.

(6)  - Ver « Le logement social dans les 27 États membres. Du résiduel à l´universel » de Laurent Ghekiére.  Habitat et societé, nº46, Junho de 2007, pp. 30-34 e “ les conceptions européennes du logement social. La diversité des conceptions au sein de l´EU”. Laurent Ghekiére. Problèmes politiques et sociaux. Nº 944. Politiques de l´habitat et crises du logement. Janvier 2008.  Ver ainda “La Politique du Logement dans les États membres de L´Union Européenne ».  U.E. Direction Générale des Études- Document de Travail. Série Affaires sociales. ”


 

Pedra do Homem, 2007



View My Stats