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JCG
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7/27/2014 07:21:00 da tarde
(texto enviado para publicação no jornal Público - 11.06.2014 - e não publicado)
QUEM NOS RESGATA DA DESIGUALDADE?
Quarenta anos passados sobre o 25 de Abril, a tal
madrugada libertadora que nos trouxe os 3 D`s com os quais passámos a conjugar
Democracia com Desenvolvimento e com Descolonização, que País é este em que
vivemos?
A pergunta é justificada por uma inquietação que nos é
imposta pela realidade observável: Portugal tornou-se um país marcado por uma
desigualdade social chocante, sobretudo no contexto europeu, sendo hoje um dos mais
desiguais, senão o mais desigual, da União Europeia, seja qual for o critério
utilizado para medir essa desigualdade.
Esta realidade que se consolidou na nossa sociedade é o
resultado mais relevante de um processo de construção política. Um processo
longo e inexorável de transformação iniciado há mais de duas décadas, de cuja
génese e evolução a esquerda não se pode excluir.
A corrupção foi o mecanismo que possibilitou ganhar
etapas nessa construção. Corrupção promovida através da omissão e da acção do
Estado de Direito. Estado que promoveu a transferência de bens públicos para
mãos privadas, a um ritmo sempre crescente. Permitiu a captura intensiva da
mais-valia gerada no processo de urbanização – transformado que foi o processo
industrial num processo de urbanização e de desenvolvimento urbano, como
antecipara Henry Lefebvre[i]
em 1968 - e apurando, cada vez mais, os mecanismos promotores da corrupção presentes
no sistema de contratação pública. Só entre 1985 e 2000
foram geradas mais de 100 mil milhões de mais-valias urbanísticas que foram
perdidas pelo País. Mais do que o valor do resgate efectuado pela Troika em
2011[ii].
A Troika e o Governo acentuaram o agravamento das
desigualdades e o empobrecimento de camadas mais vastas da população. Introduziram
uma nova dinâmica no processo que, até então, decorria de forma mais suave,
embora inexorável, brutalizando-o. Sendo Portugal um dos países europeus com o
Estado Social mais fraco, essa brutalização tornou particularmente violentas as
consequências dos cortes nos serviços públicos. Essa violência concretizou-se a
dois níveis: privatização progressiva dos serviços públicos essenciais,
mercantilizando a acessibilidade dos cidadãos; redução, por autêntico confisco
fiscal, do poder de compra das famílias, com perdas muito elevadas num espaço
de tempo muito curto.
O neoliberalismo, muito influenciado nesta fase da sua
evolução pelo neoconservadorismo americano do tipo Tea Party, propõe-nos uma despolitização radical da desigualdade
estrutural, ao mesmo tempo que, através do controlo dos media, promove uma crescente
tolerância para com os seus efeitos sociais mais devastadores. A desigualdade
deixa de ser encarada como uma consequência de opções políticas concretas, de
opções políticas que beneficiam alguns em detrimento de todos os outros, para passar
a ser sobretudo “explicada” como o resultado inevitável de um conjunto de
escolhas imprudentes feitas pelos cidadãos que são, afinal, vítimas de si
próprios.
O endividamento dos cidadãos foi o álibi ideal para esta
narrativa. A narrativa oficial, repetida ininterruptamente, é a de que o que aqui
nos conduziu foi o despesismo sem controlo, foi uma pulsão – erótica? - que
levou os cidadãos a quererem viver acima das suas possibilidades. Não importa
que esse endividamento tenha sido imposto aos cidadãos no quadro de opções
políticas do Estado. Quer no quadro da ausência de alternativas para o acesso a
uma habitação digna, sem ser através do crédito hipotecário, quer, num contexto
mais alargado, funcionando o crédito fácil como garante da manutenção da
capacidade consumidora das massas, face a uma cada vez mais desigual
distribuição da riqueza.
O estado neoliberal/neoconservador, bem representado pelo
Governo e pela Troika, impôs à sociedade a sua racionalidade política própria. O
Estado lidera a distribuição das rendas e controla os cidadãos, exercendo o seu
poder de forma autoritária, desumana, cruel se necessário for, mas não é
responsável por eles. Os cidadãos são compelidos a assumirem toda a
responsabilidade pela sua vida numa lógica empresarial, como se cada um de nós
não fosse mais do que um empresário em nome individual, um empreendedor, e a
vida de cada um apenas e só “o seu negócio”, negócio que, como se sabe, nem
sempre corre bem. No contexto desta opção política, fará todo o sentido afirmar-se
ter o país melhorado apesar de os portugueses estarem a viver pior. Ou elogiar
os portugueses pelo seu heroico desempenho, sendo irrelevante ter esse
desempenho resultado não de uma opção livre mas de uma imposição não sufragada.
Ou questionar abertamente, como faz o Governo relativamente ao Tribunal Constitucional,
as decisões dos órgãos de soberania. Como afirmou Mário Draghi, em 2012, numa
entrevista ao Wall Street Journal [iii],
o contrato social na Europa acabou. Quer isto dizer, como referiu Chomsky, que Draghi
e os seus parceiros estão a aniquilá-lo. E estão determinados. Trata-se de
falar de um projecto político ainda em curso – a implosão de um modelo social
baseado numa ideia de democracia, equidade e participação - não sufragado
através de eleições livres e democráticas, como sendo a realidade já existente.
Construir um projecto político que permita reconstruir a
Europa dos cidadãos e da solidariedade social não passará certamente pelo
reforço do nacionalismo - esse perigoso “ovo da serpente” – muito menos pelo
abandono da Europa. É necessário reforçar a componente participativa da
democracia que as burocracias nacionais e europeia têm reprimido. É necessário
reforçar a coesão territorial na União Europeia. Precisamos de eleger a
diminuição da desigualdade como o projecto político da próxima década. Sem uma radical
diminuição da desigualdade, sem o reforço dos direitos de cidadania, não haverá
retoma económica possível. Apostar apenas e só no crescimento sem lhe juntar
estas duas dimensões é persistir num logro e enganar os portugueses. Talvez seja
uma boa ideia regressar a 2005 [iv]
e à célebre metáfora “dos meus três filhos igualmente amados” - a Economia, o Ambiente
e o Estado Social – utilizada por Durão Barroso, no discurso sobre crescimento
e emprego. Barroso anunciou, então, ter optado por dedicar o melhor dos seus
esforços à economia, o seu filho em pior estado, apostando no crescimento e na
criação do emprego para revitalizar o projecto europeu. Colocou no prego a
política de coesão territorial europeia e as preocupações ambientais. Dez anos
passados, mais de uma dezena de milhões de desempregados depois, com uma cada
vez maior clivagem entre países ricos e pobres, com uma desigualdade crescente
dentro de cada país, com a direita nazi a capitalizar o descontentamento e o
reforço do espírito nacionalista por quase toda a Europa, não são audíveis sinais
de arrependimento. Mas os ecos da crescente desigualdade, esses chegam-nos de
todos os cantos do solo europeu.
É esta Europa que os seus dirigentes, equipados com as velhas
ideias ressuscitadas do meio do século XVIII, conduzem para o abismo e para a
guerra, que temos de mudar. Todos os europeus, sob pena de um destes dias nos encontrarmos
algures no interior de um conflito da dimensão daqueles que ensombraram a
primeira metade do século passado.
O debate em torno da desigualdade crescente e da sua urgente
ultrapassagem é o debate necessário à esquerda e só faz sentido no contexto
europeu. As perspectivas nacionalistas e aquela história dos dias que passam
sobre “qual será o líder mais fadado para conquistar mais rapidamente o poder”,
servem apenas para nos distrair daquilo que é urgente fazer. Quem nos resgata
do flagelo da desigualdade? É essa a resposta que a esquerda tem que ser capaz
de dar de forma clara.
10.06.2014
Engenheiro Civil
Telem. 925247279
[i] Lefebvre, Henry (1968). Le Droit à la
Ville. Económica. Antropos. 1968.
[ii] Sobre esta questão ver o programa sobre “Corrupção
e Urbanismo” da Biosfera, na RTP-2 de 19.09.2012, disponível em http://www.youtube.com/watch?v=HBrxszov134
[iii] Brian Blackstone, Matthew
Karnitschnig e Robert Thomson, “Europe´s Banker Talks Tough”, Wall Street Journal, 24 de Fevereiro de
2012. Citado por Noam Chomsky em
“Mudar o Mundo” Bertrand Editora, 2014.
[iv] Comunicação ao Conselho
Europeu da Primavera . “Trabalhando Juntos para o Crescimento e o Emprego. Um
novo começo para a Estratégia de Lisboa”, citado por Andreas Faludi em “Territorial Cohesion
Policy and the European Model of Society”
disponível em http://aesop2005.scix.net/data/papers/att/228.fullTextPrint.pdf